Aleixo Belov – O navegador solitário – Entrevista – Parte 1

Beto Benjamin (B.B.): Lamento informar mas, a entrevista que gravamos em janeiro passado “foi pro brejo”. O arquivo no iPhone foi corrompido (parece que a moda pegou no Brasil) e não consegui recuperá-lo. Vamos gravar nova entrevista e você passa ser o primeiro entrevistado do Nunca se Sabe a gravar duas vezes… Parabéns!

Aleixo Belov: É a vida, né? Fazer o quê? Rapaz, cada hora é uma hora. Agora, fique sabendo que cada vez que conto uma história, conto diferente. Nunca uma pessoa conta a mesma história duas vezes. Depende de tanta coisa… Do estado de espírito; tem dia que conta a história de um jeito, outros, de outro. Tem hora que você está animado, outras, desanimado e por aí afora… Já que temos que fazer tudo de novo, vamos começar logo então?

Como tudo começou! O presente que inspirou o gosto pelo mar!

B.B:  É verdade que um óculos de mergulho que você ganhou lhe fez se interessar pelo mar?

Aleixo Belov: Aprendi a nadar muito tarde, só aos treze anos porque meu pai não tinha dinheiro. Era imigrante aqui no Brasil e não era sócio de clube nenhum. Ia aprender a nadar aonde?

Aos dezesseis anos ganhei um óculos de presente de um amigo que ia para o Itamaraty e não podia levar tudo o que tinha. Era um óculos de mergulho. Eu nem sabia para que servia aquilo mas, esse presente, mudou o meu destino.

Veja só, naquele tempo não tinha televisão – nem em preto e branco – que dirá Discovery Channel! Hoje as crianças podem ver o pessoal mergulhando na televisão a cores e até em 3 D… Naquela época ninguém mergulhava. Ninguém conhecia os equipamentos de mergulho. Ninguém sabia o que era um óculos de mergulho.

Pois bem, um dia peguei o óculos e entrei no mar. Inicialmente no raso, com água nos joelhos. Depois andei mais um pouquinho, mais outro pouquinho e, de repente, terminei me apaixonando pelo mar. Veja só o que aconteceu em seguida:

Arriando a vela do Três Marias

Dei uma volta ao mundo sozinho. Duas, três, quatro. Fui à Antártica e à Groenlândia.

Estudei engenharia e misturei o mar com a profissão. Entendendo bem do mar, acabei como engenheiro me especializando em obras marítimas.Foi tudo muito natural. Isso me ajudou muito a viver. Porque fui vivendo, trabalhando, curtindo, navegando e mergulhando. Tudo no mar. Não é pouco.

Hoje na minha empresa – a Belov Engenharia – trabalham mais de trezentos mergulhadores na Bacia de Campos no Rio de Janeiro.

Isso foi o resultado de um óculos de mergulho!

Claro, existiam outras possibilidades. Fiz vestibular para o ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Graças a Deus não passei, apesar de classificado em sexto lugar no vestibular da Escola de Engenharia na UFBa. Teria sido engenheiro eletrônico e certamente ficado longe do mar. Tá vendo?

Estudei para o vestibular junto com um colega que foi aprovado no ITA mas, aqui na UFBa ficou em décimo lugar. Acho que o destino me colocou no lugar certo. Estudei na Escola Politécnica e me tornei engenheiro civil. O conhecimento adquirido na engenharia ajudou muito a construir os barcos, a entender a natureza das coisas. Foi muito melhor pois me aproximei mais ainda do mar, me tornei mergulhador, navegador e estou no mar até hoje. Não saí mais.

Na vida, acontecem coisas inesperadas. Nunca esperei ganhar um presente desses. Sem esse óculos de mergulho, não teria ido pro mar mergulhar. Poderia ter tomado outro rumo e feito diferente. Se alguém tivesse me dado um cavalo, eu poderia ter me tornado  um vaqueiro. Compreende?

Cuidado com o que lhe dão de presente. Um perigo! Pode mudar sua vida, sem a menor dúvida…

B.B.: Como sua família veio parar no Brasil e como você iniciou a carreira de professor?

Aleixo Belov: Meu pai Dimitri era agrônomo na União Soviética. Cuidava de plantações de trigo, centeio, aquele cereais todos. A Rússia, onde ele nasceu fazia parte da União Soviética. Um belo dia, ele estudou Agronomia e foi trabalhar na Ucrânia – que tinha as melhores terras para agricultura do planeta –  onde conheceu minha mãe, que era ucraniana,  e se casou.

Nasci na Ucrânia – filho de russo com ucraniana – mas fui criado na Bahia. Lá, mesmo naquele tempo da Segunda Guerra Mundial, as plantações eram todas mecanizadas. Como hoje é, a plantação de soja no Brasil. Ninguém planta mais soja, milho, trigo em grande escala, que não seja mecanizada.

Nasci na época da ocupação alemã na Grande Guerra, quando meu pai resolveu ir embora da Ucrânia. Ele tinha opções: podia ir para os Estados Unidos, para o Brasil ou para outros países. Disseram a ele que o Brasil tinha uma grande extensão territorial e que ia precisar de agrônomos. Então ele decidiu vir para o Brasil. Fez bem, eu penso.

Eu não gostaria de ter ido para os Estados Unidos porque a minha filosofia de vida não se casa muito com a filosofia daquele país.

Embora cada pessoa é uma pessoa, uma coisa é um país capitalista, os donos das fábricas de armas etc. Outra coisa é o povo de lá, que gosta de futebol americano e quer ser feliz como qualquer outro povo. Não tenho nada contra o povo americano, muito pelo contrário. Tenho alguns grandes amigos de lá, mas eu vim para o Brasil.

Ouço algumas pessoas dizerem que o Brasil agora está numa situação tão difícil, que se pudessem ia morar fora. Que a situação econômica e política etc. está ruim, enfim todas essas dificuldades que estamos passando. Ainda hoje alguém falou comigo que se tivesse grana teria ido morar nos Estados Unidos. Gozado… Eu podia ter morado em qualquer lugar do mundo, pois minha profissão de engenheiro me permite e ainda falo cinco idiomas. Podia ter me mudado. Mas, não.

Nunca saí da Bahia. Só moro aqui. Gosto demais daqui. Foi aqui que finquei as minhas raízes. Não são tão profundas porque foram rompidas várias vezes com as viagens que fiz. Mas, são minhas raízes…

Então, meu quando meu pai chegou ao Brasil constatou que a agronomia daqui era quase toda na base da “enxada”. Portanto, aquela experiência que ele tinha de agronomia mecanizada não foi bem aproveitada. Ele até que tentou trabalhar na agronomia aqui mas não funcionou. Migrou para a matemática e foi ser professor.

Quando fui convidado para ensinar na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, eu já tinha sido professor de matemática por mais de oito anos. Dei aulas particulares para os filhos de Norberto Odebrecht; do vice-governador da Bahia naquela época, Carybé, nosso grande pintor e para João Amado, filho de  nosso grande escritor Jorge Amado.

Meu pai foi quem começou a dar aula para esse pessoal e ficou muito conhecido na cidade. Em seguida me introduziu. Virei professor de matemática também. Quando fui ensinar na Escola de Engenharia, eu tinha dez anos de experiência como engenheiro. Já tinha uma certa vivência. Juntei a minha experiência de professor de matemática com a de engenheiro. Foi fácil para mim.

Ensinei na Escola de Engenharia por apenas quatro semestres e tive o “azar” de ter certos alunos como Beto Benjamin… [risos]. Nesse período fui professor homenageado da turma de formandos por duas vezes. No quarto semestre já não dei aula bem porque assumi a responsabilidade de construir as plataformas para a Petrobras. Deixei de ser professor por certas circunstâncias da vida.

Nessa obra trabalhava tanto, até o instante em que eu não conseguia mais me aguentar em pé.

Fui promovido a superintendente de produção e a obra era de tal complexidade que não havia tempo suficiente para resolver tudo. Por isso pedi demissão da Universidade para me dedicar exclusivamente às plataformas. Não havia como conciliar as duas coisas. Apesar de adorar dar aula.

Hoje, fora da escola, dou aula para os meus operários na Belov. Na minha empresa, atualmente com mais de mil funcionários, a maioria das pessoas entra como servente e sai como encarregado, mestre de obras, soldador profissional. Logo, minha empresa é uma escola. Meus bons encarregados me ajudam a enfrentar um mercado difícil que é o da Engenharia. São pessoas que “fiz” dentro da empresa. Muitos trabalham comigo há dez, vinte, trinta anos. Estou trabalhando com a “prata da casa”. Ensinar para mim não foi difícil. Foi até fácil. Pelo simples fato de que eu gostava de ensinar.

Quando você faz o que gosta, tudo fica mais fácil.

A idéia da volta ao mundo

B.B.: De onde surgiu o desejo de dar a primeira volta ao mundo?

Expedição Moana

A expedição inspiradora

Aleixo Belov: Ele surgiu por etapas. Primeiro me tornei mergulhador. Para pescar e ver as maravilhas no fundo do mar. Era apaixonado pelo mar. Depois, li um livro chamado “Expedição Moana” de Bernardo Gorski. Ele conta a história de quatro amigos que viajaram num barco à vela por todos os oceanos ou quase todos. Falavam muito do Mar Vermelho onde as águas são cristalinas. Claro, lá é deserto para todo lado, não chove, logo não tem como sujar a água.

Esses amigos fizeram essa viagem e mergulharam em muitos locais. Ficou guardado na minha cabeça que velejar era uma maneira fácil de viajar porque no barco tem hotel, tem cozinha, tem tudo, além do meio de transporte. Então como eu já era mergulhador resolvi que o negócio era viajar de barco, como o pessoal da expedição Moana fez.

Uma vez fui mergulhar em Porto Seguro que já foi um lugar belíssimo. Não era essa cidade de mil hotéis de hoje. Quando fui pela primeira vez, só tinha uma pousadinha com três quartos. Não tinha festa, não tinha hotel nenhum.

E eu lá nos arrecifes de fora mergulhando, apreciando a beleza do fundo do mar, no Arquipélago de Abrolhos. Adorei o fundo do mar…

Era uma coisa extraordinária, inesquecível mesmo. Aqueles corais lindos, maravilhosos, cheios de peixes, tartarugas, de tudo… Fiquei dezesseis dias mergulhando, até quebrar todas as minhas espingardas e entortar todos os meus arpões. Só voltei para Salvador quando todo o meu equipamento de mergulho tinha sido destruído. Foi ali que eu vi como aquilo era bonito. Eram os corais, os peixes etc. Então, disse para mim mesmo:

“O mundo deve ser todo bonito assim. Eu quero conhecer o mundo!”

Mergulhando em Abrolhos - BA

Mergulhando em Abrolhos – BA

Foi ali que deu aquele “estalo”, como o do padre Antonio Vieira que escreveu na areia. Foi lá que eu disse: “vou dar a volta ao mundo”.

B.B: E o que aconteceu no seu retorno para Salvador?

Aleixo Belov: Assim que voltei, fui na Ribeira olhar os barquinhos. Encontrei uns poucos barcos, mixurucas, porque em Salvador, naquela época em 1965, quando eu tinha vinte e dois anos, quase não existia veleiro. Tinha saveiro mas veleiro não. De repente, encontrei uma escuna sendo reformada por Lev Smarcevscki na beira da praia da Ribeira. Lev – como eu – era um artista, filho de russo, arquiteto, pintor, escultor etc. era o dono da escuna. Que coincidência, não é? Me aproximei e perguntei:

– “Esse barco está fazendo o quê aqui?”
Responderam: “Estão reformando. Preparando para dar a volta ao mundo.”
Pensei: ” O quê?” Parece brincadeira né! Na hora eu falei: “Rapaz, eu também quero participar desse negócio”.
A resposta foi: “Então venha trabalhar com a gente.”
Fui.

Lev Smarcevscki discutindo com um mestre a construção de uma escuna

Me deram uma lata de tinta e um pincel e lá fui eu pintar os parafusos do barco. Era um barco de madeira. Lev era um grande artista, um sonhador. Estava preparando aquele barco para sair dentro de um ano. Pensei logo em trancar o curso de engenharia para me dedicar integralmente à reforma do barco mas, por sorte, meu pai interferiu. Ele disse: “Olha, você pode viajar mas, trancar matrícula não. Continue estudando…”

Até o barco ficar pronto se passaram quatro anos. Se eu tivesse trancado tinha me ferrado. Deu tempo para me formar e, ainda trabalhar dois anos como engenheiro. Assim pude juntar um bom dinheiro. Pronto, ia viajar com dinheiro no bolso.

Chegou o dia da viagem.

O barco chamado Santa Cruz saiu de Salvador mas, a viagem de volta ao mundo acabou em Porto Rico no Caribe. Só durou quatro meses…

Fui o responsável pela navegação do Santa Cruz pois tinha estudado navegação astronômica e recebido a carta de navegador.

B.B.: Por que o Santa Cruz interrompeu a viagem?

Aleixo Belov: Durante a viagem, o barco apresentou algumas dificuldades. “Fazia muita água”. Era um barco de madeira com velas de algodão costuradas à mão por marinheiros de Cajaíba e Camamu. As velas eram boas. Os costureiros eram excelentes mas não dá para comparar com a tecnologia de hoje onde as velas são desenhadas no computador e costuradas com máquinas especiais e fios de resistência extraordinárias.

A viagem acabou em Porto Rico e de lá peguei outro barco para a Europa. Depois voltei para Salvador e continuei a trabalhar como engenheiro.

O francês e a travessia Brasil-África

B.B.:  Como foi a história do navegador francês que apareceu em Salvador querendo companhia para a travessia Salvador-Cidade do Cabo?

Livro de Pierre Chassin

Livro de Pierre Chassin

Aleixo Belov: Por uma dessas coincidências da vida soube que tinha um francês indo de Salvador para Cape Town na Africa do Sul. Ele viajava sozinho, estava com pressa de chegar para participar de uma regata que começaria em Cape Town. Procurava uma pessoa para ir com ele.

Não deu outra! Tirei férias e fui correndo me apresentar. Eu já tinha decidido que ia dar a volta ao mundo. Tentei, mas com quatro meses a viagem acabou e eu regressei sem dar a volta ao mundo. Com o francês Pierre Chassin – era o nome dele -, eu sabia que não ia dar a volta ao mundo mas, sim aprender muito durante a viagem. Ela duraria trinta e três dias. Saímos e posso dizer que em cinco dias eu aprendi – mais ou menos – como manobrar o barco dele.

Já possuía alguma experiência tendo navegado no Santa Cruz e em outros barcos ali por perto de Salvador. Essa travessia com o francês foi muito boa para mim porque depois de cinco dias de viagem eu não chamava o francês para me ajudar em nada. Quando ele estava dormindo, eu manobrava o barco sozinho. Descobri que eu podia fazer isso sozinho.

Me lembro que só para manobrar o barco no Santa Cruz teve tanta discórdia, tanta dificuldade – muita gente empilhada -. Eram oito pessoas a bordo, uma complicação retada. Na travessia eu pensei que era muito mais fácil fazer a manobra sozinho do que administrar as intrigas e egos de tanta gente.

 Decidi que ia dar a volta ao mundo mas, sozinho.

Uma coisa me marcou nessa viagem com o francês. Fui com ele fazer as compras de mantimentos para o barco e, na última hora, ele me deu uma declaração para assinar, onde estava escrito que ele não seria responsável por mim em caso de acidente. Se eu caísse no mar e morresse ele não seria responsável. Pediu para que eu assinasse e pôs no Correio para o irmão dele na França.

Aquilo me deixou extremamente encucado. Minha mulher na época, da Graça, disse: “Você vai viajar com esse cara e se ele for maluco, esquizofrênico ou paranóico?”. Respondi: “Quando uma pessoa quer ir, a pessoa vai. O abacaxi que der, se descasca no caminho”. Assim mesmo! E fui…No final a viagem foi muito boa mas, ficava o tempo todo pensando na carta.

Na saída caiu um temporal em Salvador mas, o francês não queria saber… Não quis adiar a saída porque ele tinha que chegar em Cape Town a tempo de participar de uma regata de volta ao mundo.

Logo na partida surgiram aquelas nuvens negras e entrou uma rajada de vento que rasgou a vela. A vela grande dele tinha sido danificada antes de chegar a Salvador. Tinha rasgado na parte inferior. Consertou no Rio de Janeiro. Com o vento forte que soprou, rasgou no mesmo lugar porém de tal sorte que “dando rizos” ou seja reduzindo a vela, ela continuava funcionando. E assim fomos…

Rapaz, eu enjoei na saída nesse barco pequeno do francês. A última vez que tinha navegado foi na escuna Santa Cruz.  Ali eu não enjoei porque o movimento da escuna de vinte e quatro metros era completamente diferente. O barco do francês era de regata. Nervoso o bicho pulava parecendo um cabrito. Era uma casquinha de fibra de vidro e um convés de compensado.

Levei três dias no mar  completamente enjoado que não aguentava ficar em pé. Ele  tinha um cachorro chamado Be Good  – que com seu sotaque francês ele chamava de “Bi-gudi – na tradução Seja Bonzinho. Era um cão policial que queria me morder o tempo inteiro.  Nos primeiros três dias de viagem não consegui fazer absolutamente nada a bordo. Enjoado.

No terceiro dia, Pierre fez um chá e me deu uma xícara para beber. Olhei para dentro e vi que tinha dois fios de pelo de cachorro. Disse para mim mesmo: “Puta que que pariu! O que faço agora?” Tirei os pelos de dentro da xícara e tomei o bendito chá. Melhorei do enjoo. No quinto dia tomamos um banho de água salgada . No barco tinha pouca água doce. Nos enxugamos e fomos adiante.

À medida que íamos navegando eu ia pegando a prática. Ficando mais esperto. Não sentia mais enjoo, não tinha mais nada. No nono dia eu tomei mais um banho e o francês nada. A partir daí, ninguém tomou banho até o final da viagem. Fazia um frio de lascar.

Pegamos cada tempestade no caminho. De repente um dia, bateu um temporal e as conservas começaram a cair e a rolar pelo chão do barco. Eu só olhando para o teto. As madeiras do teto eram de compensado. O barco jogava prá um lado e pro outro. Daí a pouco, começou a cair pedaços de madeira no chão. Pensei, pronto que esse barco vai se desmanchar todo mas, graças a Deus, não aconteceu. A experiência adquirida lidando com os temporais foram fundamentais para mim.

B.B.: Você sentiu medo?

Tempestade se aproximando

Aleixo Belov: Medo? O tempo todo. O medo era uma coisa latente que não saía. Só tinha medo… Com esse temporal a cruzeta desceu, saiu do lugar. Vou explicar sobre a cruzeta para aqueles que não conhecem: Tem o mastro e dele descem os cabos de aço. Para o mastro não entortar existem umas pecas transversais, chamada cruzeta. Então o cabo passa ali. A cruzeta é articulada e desceu. O cabo frouxou e a consequência é que o mastro podia cair.

O francês olhou para mim e disse: “Suba no mastro e amarre a cruzeta lá em cima.” Nessa hora, me lembrei da carta. Pensei na hora, se eu cair no mar  esse filho da puta não virá me buscar. Pensei ainda se estivesse fazendo uma manobra em cima do barco e escapulisse esse cara ia me deixar morrer…

Subi no mastro e fiz o serviço.

No decorrer dessa travessia, eu me comparava com o francês o tempo todo. Ele já era um navegador solitário. Ele só pegou um tripulante porque tinha pressa. Para velejar mais rápido na travessia precisavam duas pessoas. Senão, toda vez que anoitecesse, teria que reduzir o pano para dormir, pois o barco dele era franzino, muito rápido, muito leve.

Ele usava um óculos de “fundo de garrafa”, um grau retado. Eu enxergava muito melhor que ele. Ele fazia uma média de cinco manobras por dia. Barco de regata é assim mesmo. Toda hora tem que manobrar. Põe vela mais leve, depois uma maior, uma menor com o tecido mais grosso. Rapaz, o francês anotava tudo no seu diário de bordo.

Toda hora tinha que abrir escotilha e puxar um saco de vela que pesa muito. Eu puxava muito mais rápido que ele. Eu tinha muito mais “braço” que o francês. Resumindo, ele era franzino, careca, enxergava pouco mas, conhecia muito de navegação. Isso era verdade. Conhecia demais. Fora citado como navegador solitário em dois livros. Me mostrou os livros.

Pierre Chassin era paraquedista, mercenário, filho de um general da Força Aérea francesa. Lutou na Indochina, Vietnã, quando o Vietnã era colônia francesa e em muitos outros lugares pelo mundo. Ele ficou assim, meio doido e, quando esteve na Africa no Congo lutou como mercenário na guerra pelos minérios. Ele não era uma pessoa comum.

Teve um outro episódio que vou contar. Com o temporal, o cárter do barco ficou encharcado. Apesar da descarga possuir um dispositivo para evitar entrar água no cárter, o temporal tinha sido muito grande e não foi suficiente para proteger o equipamento. Íamos precisar virar o motor para carregar bateria, portanto tinha que remover um bujão embaixo do cárter, retirar o óleo com a agua e recolocar óleo novo. Rapaz, o Pierre se esforçou todo num lugar superapertado e não conseguiu fazer o serviço. Disse para ele: você tentou e não conseguiu. Dê licença. Fui lá e fiz. Consegui. Imagine a minha moral. Aí eu decidi mesmo: Vou ser navegador solitário!

Fiquei puto da vida quando o Pierre me mandou subir no mastro e fazer o serviço da cruzeta. Não esquecia da carta. Então quando ele dormia eu era navegador solitário. Quando eu ia dormir era ele, navegador experiente. Eu estava ali, naquela travessia, treinando para ser navegador solitário e estava felicíssimo.

A dúvida era: se eu caísse no mar será que ele voltaria para me buscar? Disse para mim mesmo. “E se ele caísse no mar eu voltaria para buscá-lo?” Era a minha chance de ser navegador solitário. “Tá rebocado, se eu volto para buscar esse filho da puta! Me fez assinar aquela carta. Ele vai se foder, se cair dentro d’água.” Eu estava começando a odiá-lo pelas coisas que ele fazia.

Finalmente chegamos em Cape Town. Os dois. A travessia havia sido bem sucedida. Então, subitamente, todo aquele ódio desapareceu por completo e eu senti uma afeição muito grande por ele. Foi quem me deu a chance de ter vivido aqueles momentos de incerteza, de luta, de competição e de afirmação.

Hoje lembro do Pierre Chassin com muito carinho. Foi uma pessoa importante na minha vida.
Na viagem de Porto Seguro resolvi um que dia daria a volta ao mundo.
Na travessia com ele,  resolvi que queria ser navegador solitário.

Depois que dei a volta ao mundo, me perguntaram: por que  fui sozinho? Por dois motivos: primeiro, achei mais fácil manobrar o barco sozinho do que administrar as intrigas; segundo, se eu podia subir uma montanha muito mais alta por que ficar subindo morrinhos, entendeu?

Voltei para Salvador e fiz tempos depois minha primeira viagem de volta ao mundo em solitário. Mas não foi apenas isso. Nessa primeira viagem de volta ao mundo eu tinha pouquíssimo dinheiro. Tinha acabado de construir o barco e não sobrou quase nada de dinheiro.Tinha quase dez mil dólares. Naquele tempo o dólar valia muito mais entretanto, era pouco para dar a volta ao mundo. Por isso eu não arriscava o barco de jeito nenhum. Só parava em porto que tinha carta náutica. Não entrava em riachinhos etc. Era para preservar o sonho. Preservava isso. Por isso, fui, fui, fui…

Visitando Bali – Indonésia 

                                                                    Vistas de Bali

Quando cheguei a Bali na Indonésia, o Oceano Índico estava em plena estação de ciclones. Eram as piores estações para a navegação. Lá eu soube de um ciclone que passou na ilha de Madagascar e arrancou todas as bananeiras da Ilha. Não sobrou nada.

A carta de ventos – pilot chart – indicava passagem desses ciclones todos. Foi muito bom chegar a Bali. Achei um lugar maravilhoso. Mas naquela ocasião eu tinha duas opções: atravessava na estação dos ciclones ou teria que esperar seis meses por lá. Tinha ainda uma terceira: pegar outro rumo.

Como eu queria concluir logo a volta ao mundo, começou a nascer dentro de mim e, de modo muito forte, aquela vontade de ir. Havia outros barcos, outros veleiros na região. Comecei a conversar com eles explicando meu plano e vontade de atravessar o Índico, rapidinho. Imagine que de Bali para Cape Town são seis mil milhas de distância.

Pensei bem, se atravessar o Índico, praticamente, cheguei em casa. Estou no Atlantico. É só gritar de lá: “Ô pessoal, tô chegando…”

Essa idéia foi crescendo na minha cabeça, foi crescendo… Quando falei com os amigos dos outros barcos o que eu estava prestes a fazer, eles me trouxeram suas cartas náuticas mostrando as passagens dos ciclones. Não pestanejei, abri a minha gaveta e mostrei que tinha a mesma carta náutica que eles e que estava ciente dos riscos que iria correr. Mas a idéia era uma só: seguir em frente agora, travessar e telefonar para os amigos…

B.B.: Quais suas impressões sobre Bali nesta e nas outras viagens? Qual o efeito do tempo e dos homens naquele paraíso?

A volta ao mundo no Três Marias

A volta ao mundo no Três Marias

Aleixo Belov: Vamos falar de Bali. Me falaram muito sobre Bali antes da viagem. Disseram que era um paraíso. Naquele tempo tinha muita gente indo pra lá. Eu também fui. Nessa primeira viagem a Bali, só vi artistas, pintores, escultores. Gente maravilhosa.

Meu barco – o Três Marias – foi todo esculpido por dentro pelos artistas que viviam em Bali. Uma das atrações de lá eram as turistas do mundo inteiro, inclusive para fazer sexo. Era assim: à noite, a gente chegava no bar, encontrava aquele pessoal todo por ali. Se sentava para conversar e ninguém ia dormir sozinho…

No outro dia, já se sentava com outras pessoas e não se falava do dia de ontem. Ninguém dizia: você me “deu” ontem, vai me “dar” hoje também. Não tinha nada disso. Eu sei que em vinte e cinco dias eu arrumei umas cinco ou seis namoradas. Eu que vinha de uma abstinência terrível. Bom, nem posso reclamar pois também consegui na Austrália antes de chegar a Bali.

Naquela época eu era bonito e forte. Tinha uma energia, um carisma. Estava dando a volta ao mundo sozinho. Isso me credenciava perante as mulheres, os homens, todo mundo. Eu trazia comigo uma aura, como se fosse uma nuvem me acompanhando. Quando a pessoa se aproximava, entrava nessa nuvem e parecia que você tinha o domínio sobre ela.

Quando fui a Bali  na primeira vez, ninguém trancava a porta de casa. Não tinha ladrão, prostituta, droga. Não tinha nada disso. Era um paraíso só cheio de artistas do mundo inteiro. Você segurava a mão de uma balinesa e ela não puxava não. Ficava ali tranquila, parada com a mão presa durante meia hora. A mão dela era ela. Ela era ela e você era você! Um estrangeiro. Elas não queriam nada com os estrangeiros. Você não conquistava uma nativa.  Essas meninas todas que eu disse que a gente transava em Bali eram as turistas: francesas, americanas, alemãs, européias. Não eram as nativas…

Cinco anos depois em Bali, já tinha um motoqueiro em cada esquina perguntando se você quer haxixe ou uma menina para transar!

Dez anos depois em Bali, eu não reconheci mais o rio que tomei banho pelado na primeira viagem. Lá, naquele tempo os homens tomavam banho pelado. Me lembro muito bem. Cheguei por volta de cinco horas da tarde, os caras trabalhando no porto, terminavam o expediente, tiravam a roupa e pulavam no mar para tomar banho.

Olha só as peças de xadrez de Bali!

Nunca tinha visto homem ficar nu no meio da sociedade. Já tinha visto mulher. Mas homem foi a primeira vez. Pois lá os homens ficavam nus, tomavam banho e depois vestiam a roupa e iam pra casa na maior paz e harmonia, parecendo os índios aqui no Brasil.

As moças trabalhavam na plantação de arroz e depois tomavam banho na vala de irrigação, de calcinha. Às vezes algumas chegavam para lavar roupa. As mulheres, às vezes, usavam uma toalha, mas pra não molhá-la, elas a levantavam um pouco e se alguém prestasse atenção, via o filme todo… Era uma maravilha.

Anos depois, Bali ficou tão famosa na Indonésia – que tem treze mil ilhas – que sua população que era de quinhentos mil habitantes cresceu para três milhões! Hoje já são mais de quatro milhões. O pessoal das outras ilhas foram para lá. Invadiram Bali que não tinha infraestrutura para suportar toda aquela invasão.

Começaram a roubar tudo e a se prostituir. Rapaz, na última vez que estive em Bali enquanto eu estava na marina, roubaram uma motocicleta. Perguntei se tinha seguro. A resposta foi que não se segura mais nada em Bali, pois o seguro custa quase o preço de uma motocicleta!

Para mim Bali acabou!

A entrevista com Aleixo Belov – Parte 2 – continua num próximo post

  1. As fotografias deste post foram feitas por Aleixo Belov, Nilton Souza, Leonardo Pappini e copiadas da internet.

11 comentários em “Aleixo Belov – O navegador solitário – Entrevista – Parte 1

  1. Só hoje li a parte 1 da entrevista com Belov…
    Realmente acho que você tem o “jeito” pra coisa….
    Ficou maravilhosa a matéria….
    Vou imediatamente para a parte 2.
    Parabéns

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  2. Pingback: Aleixo Belov – O navegador solitário – Entrevista – Parte 2 | Nunca se sabe

  3. Acho incrivel os dois lados do Aleixo que se harmonizam, o profissional jogo duro e racional e o lobo do mar solitario em busca de si.
    Me identifico com ele quando diz que “sao minhas as raizes” nao importa onde moramos…
    Aleixo viveu em um tempo onde o mundo ainda nao tinha sido contaminado, onde a verdade e a pureza das coisas era facilmente encontrada in natura e ele espelhava isso! Parabens os dois pela bela entrevista!

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  4. Maravilhoso está lendo toda essa história verdadeira, lindo de mais fabuloso saber, que um presente que para muitos poderia ficar nos arquivos de esquecimento, alguém podes sempre ser tão feliz assim, alguém seguir adiante e você acrescer sua própria história de sorte o carinho o qual Aleixo levou a sério cada dia suas ideias isso foi incrível vindo de uma situação não muito boa deu a volta por cima valorizou o seu presente; e hoje é Aleixo belov homem dos encantos do mar. Quero deixar meus parabéns. E dizer que tenho vontade de passar um dia passeando em seu barco. Sou de salinas dá Margarida BA meu contato. Para realizar este sonho (75)988598176 abraços

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  5. Claudenice, Aleixo nesse momento encontra-se a bordo do Fraternidade em direção ao Alasca em mais uma de suas maravilhosas viagens pelos Sete Mares. Certamente, como bom baiano não deixará de se lembrar do seu pedido na volta. Nunca se sabe!

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