Também, João Ubaldo, com uns amigos desses… nem Itaparica aguenta! Bate-papo com amigos do escritor – Parte 2
Na qualidade de frequentador, de uns anos para cá, do Boulevard na ilha de Itaparica – bem como assíduo penetra das festas de aniversário do saudoso João Ubaldo Ribeiro – decidi me aventurar a garimpar a falta que ele faz aos seus amigos que sempre estão pela ilha, e olhem só a segunda parte do que registrei.
Devo dizer que fiquei impressionado de início e depois profundamente tocado com o carinho, a admiração e a amizade que os entrevistados devotam a João Ubaldo. Não me surpreendeu entretanto, pois tratam-se de relações construídas há muitas décadas, que foram nutridas com os encontros de sempre que eles souberam cultivar, demonstrando que nem a distância nem o tempo são capazes de apagar – sequer de diminuir – amizades verdadeiras e desinteressadas como essas.
A todos eles e ao nosso João Ubaldo, meu respeito, admiração e reverência.
Beto Benjamin.





Parte da extensa obra de João Ubaldo.



Paisagens da ilha de Itaparica.
B.B. (Beto Benjamin): Sérgio. E você? Tem alguma história para contar?
Sérgio Harfush: Escute essa: Tem uma história do João Ubaldo que Toinho Sabacu não vai gostar muito não (Toinho ali em frente, olha de banda do outro lado da mesa), mas é uma daquelas que mais repercussão teve: João Ubaldo fez uma crônica sobre isso. Foi quando a Secretaria de Saúde veio realizar na população masculina de Itaparica o famoso exame de próstata. Vieram três médicos para fazer o exame e Toinho soube que haveria esse campanha na ilha. João Ubaldo disse que ele botou paletó e gravata e foi fazer o primeiro exame. Saiu o resultado dizendo que estava tudo bem e ele não acreditando muito, pediu para ser examinado pelo segundo médico. Também desconfiando da opinião do segundo médico, partiu imediatamente para o terceiro…
João finalizou a crônica acrescentando que naquela campanha de saúde, quantos médicos tivessem, tantas dedadas Toinho ia tomar. Seria a próstata mais bem cuidada da ilha e do Brasil!…

Sérgio Harfush
A última do João Ubaldo foi com a Seleção Brasileira. Ele escreveu no jornal A Tarde: “Meu amigo Toinho Sabacu, de Itaparica ficou tão contrariado com o 7 a 1 da Alemanha no Brasil mas, tão contrariado que dobrou a dose de remédio de pressão e ficou trancado dentro de casa por três dias, sem botar a cara na rua.”
Toinho Sabacu: Rapaz, eu aqui na ilha tranquilo e o cara lá no jornal fazendo sacanagem comigo. Ainda disse: “Toinho, você já leu ‘A Tarde’ de hoje?”. “Não!” “Vá lá, leia. Pegue lá para você ver”. É brincadeira?!
Jacob Branco: Queria ver o João Ubaldo fora do sério? Oferecesse um celular ou bagunçasse o seu jornal. Ele “virava na porra”, véio…
Toinho Sabacu: Olha, sinto muita falta dele mesmo entendeu? Mas muita mesma… Esse janeiro não foi como os anteriores.
Foi um janeiro mais triste para mim principalmente porque me privou de ter a presença de um amigo que eu gosto, gostava e continuo gostando, onde ele estiver.
B.B.: João Ubaldo gostava daquelas festas de aniversário, abertas ao povo, na Biblioteca Pública aqui na ilha de Itaparica?
Toinho Sabacu: Ele gostava. Gostava porque era promovida por Dalva, a bibliotecária que fazia as festas com muito amor e tinha grande amizade a ele. O povo participava. Aquele povão – que ele gostava – sempre ia. A festa era bonita. Ele saía de lá alegre, contente, satisfeito. Por último, na festa desse ano fizeram uma homenagem a ele: inauguraram um busto de João Ubaldo. A festa foi muito bonita…
A conversa foi interrompida pela súbita chegada de meu amigo Fred Carvalho, copo de whisky na mão e na animação que lhe é peculiar… Amigo de longas datas, que não vejo há algum tempo… Foi entrando logo no papo quando soube que a conversa era sobre João Ubaldo Ribeiro e contou que uma certa vez o Roberto Irineu Marinho estava na casa de Newton Lins, na Gamboa, sul da Bahia e convidaram João Ubaldo, que só tomava whisky Old Eight, para visitá-los.
Chegando lá não deu outra, João Ubaldo foi logo pedindo seu Old Eight em dose dupla. Casa de bacana sabe como é, né? Ninguém passa recibo. Olha, que mágica o Newton Lins fez aquele dia para arrumar o whisky eu não sei, mas, num instante trouxeram o Old Eight em dose dupla para a alegria do João.
Jacob Branco: Também esse ano lançaram o livro “Viva o Povo Brasileiro e João Ubaldo Ribeiro – Antologia” sobre os amigos de João Ubaldo…. [B.B.: veja foto ao lado]
Toinho Sabacu: É. Teve o lançamento do livro sim. Tem um depoimento meu nesse livro.
B.B: E sobre o Rio de Janeiro? O que João Ubaldo falava de lá?
Toinho Sabacu: Ele dizia que não saía muito. Só saía para o Tio Sam no Leblon, onde tem mesa reservada até hoje. Reunia-se com os amigos e dali para casa. Não gostava muito de sair, não. Aqui mesmo em Itaparica, antigamente a gente andava na praia, pescava siri, mas com o tempo ele foi saturando, cansando. Já nem mais ia à praia. Mal vinha aqui no mercado. Eu chamava: – “João, vamos dar uma esticada na Marina?” Ele respondia: – “Não tô a fim de andar não, Toinho. Quero voltar para casa…” Ele já sentia muito cansaço.

Famoso Tio Sam do Leblon
Jacob Branco: Tinha uma barraca de bebidas e eu me lembro que quando ele chegava para nos visitar, pegava o jornal e dizia: “o meu jornal é donzelo!” Não queria que ninguém pegasse o jornal dele. Que ninguém lesse primeiro que ele. Eu dizia: “o seu está aqui guardado. Ninguém pegou nele não.” “Guarde aí que eu vou na Fonte da Bica e volto”, e tomava o seu cafezinho. Todo dia de manhã cedo ele estava aqui. Na barraca a gente batia papo. Ele fumava um cigarrinho, eu também. Era um papo tão gostoso que era difícil se desligar dele. Também não demorava muito, não: Logo Ia pra casa.
Uma vez ele viajou. Voltou e me encontrou no mesmo lugar, na barraca de bebidas. Eu já não fumava mais. Ele tomou o cafezinho, meteu a mão no bolso e pegou o cigarro. Eu disse: – “Rapaz, pelo amor de Deus largue esse vicio para lá”. Ele respondeu: – “Vou fazer sua vontade. Não vou fumar mais. Só vou fumar esse aqui…” Viajou para retornar só no ano seguinte.
Essa é que foi bacana:
Eu disse:
– “Graças a Deus, João, que nós deixamos de fumar.”
Ele respondeu:
– “Você! Eu não sou o homem que você é não, rapaz.”.
Eu ficava muito no pé dele sobre o cigarro.
Eu dizia: – “Amigo, deixe de fumar.”
“Esse cigarro ainda vai destruir você.”
– “É Toinho, essa miséria desse cigarro não tem como eu deixar de fumar mas, seu amigo vai lhe prometer o seguinte: Para o ano, quando eu voltar aqui, você me cobra. Não venho mais com cigarro.”
– “Olha lá rapaz! Não faça promessas que você não possa cumprir. Você tá falando aí, na vista de todo mundo. Vou te cobrar. Você sabe que eu cobro!”
– “Fique tranquilo, estou lhe prometendo que não vou mais fumar”.
E foi embora…

Jacob Branco na ilha
Ano seguinte fui para o aeroporto com Beto buscar ele e Berenice. Em seguida apanhamos a lancha ali no Yacht Club e viemos para Itaparica. Viemos conversando na popa da lancha. No caminho, se esqueceu completamente da promessa feita no ano passado. Meteu a mão no bolso e tirou a carteira de cigarro. Eu só olhando e ele lá, “desligadão”. Tirou o cigarro e botou na boca. Quando pegou o isqueiro e ia acender, olhou para mim e disse:
– “Amigo, falhei com você. Não foi?”
Eu disse:
– “Nem sei do que você está falando!”
Ele respondeu:
– “Você sabe sim. Mas, vou lhe prometer. Não vou perder a moral total com você, não.”
Apagou o cigarro, jogou na lixeira. Pegou a carteira de cigarro e me entregou.
– “Tome. Faça o que você quiser com esse cigarro que seu amigo não vai mais fumar…”
Amassei a carteira de cigarro, cheguei na lixeira da lancha e joguei no balde. Repetiu:
– “Seu amigo não vai mais fumar a partir de hoje.”
Não fumou aqui em Itaparica. O período todo ele não fumou. Mas não fumou mesmo. Quando voltou para o Rio teve a recaída.
Ele teve um principio de piripaque aqui e foi internado no hospital. Arritmia. Passou uns dez dias no hospital. Fui lá com Beto visitar. Encontrei o Antonio Carlos Magalhães que estava de saída. João Ubaldo bateu papo, conversou comigo e disse: “Toinho meu irmão, passei um momento retado. Vi a catraca nos olhos… Vi a catraca perto… Toinho, você tem medo da morte?”.
Eu disse:
“Olha, João, medo da morte eu não tenho não. Quem tem medo da morte são as pessoas abastadas. Que tem bens materiais e fica naquela pressão, com receio de perder tudo. Perder aquele “bem bom”! Eu sou um “lenhado”. Se eu morrer, não tenho nada a perder. Agora, eu tenho medo é da catraca!”
A catraca é aquele momento que você passa de um estágio para o outro. Da vida para a morte. Eu ainda não vi ninguém morrer bonitinho. Aquela passagem ali. Mas, da morte eu não tenho medo. É da catraca. Na hora do cara sair dessa para outra. Aí é bronca. Ele disse: “Sabe que você está cheio de razão? Morrer é natural. Ninguém vai ficar… Todo mundo vai morrer.”
B.B.: E os livros deles, os personagens, vocês comentavam? Ele falava sobre os livros?
Toinho Sabacu: Não falava não. Ele escrevia… Em alguns livros ele botava um personagem ou outro… Ele me deu um presente. Mandou do Rio toda a coleção. Ainda botou um bilhete dentro da caixa. Aquele painel que tem ali na Ilha foi preparado por mim:
“Meu amigo Toinho: segue esse presente para você mas não é obrigado a ler essa porra toda não.”

Sobrado onde foi escrito Viva o Povo Brasileiro
Jacob Branco: No que se refere à parte literária, ele dizia que eu era o maior leitor dele aqui da ilha. Não cheguei a ler todos os livros. Em janeiro de 1983 eu estava passando no Largo da Quitanda quando ele me chamou e pediu que subisse para o primeiro andar. Me apresentou uns calhamaços datilografados naquele papel rascunho. Disse: “Leia aí meu novo livro!” Falou com aquele vozeirão inconfundível. Olhei umas páginas e perguntei: “João, qual é o título?” “Jacózinho, meu filho, ainda está sem título…”
Naquele momento ele dava o primeiro passo de um futuro best-seller: “Viva o Povo Brasileiro”. Eu me arrepio de ter sido o primeiro leitor do livro. Me emociono. Fui o primeiro leitor de “Viva o Povo Brasileiro”, porra!
E a perda em si! A morte é insubstituível quando se trata de João Ubaldo Ribeiro. É muito forte e recente também. Acho que perde todo mundo: Itaparica, o povo, a cultura, a Bahia, o Brasil, o mundo. Porque ele me confessou: “Jacob, eu praticamente vivo do exterior.” Como ele disse várias vezes: “Vampeta – o jogador de futebol – ganha numa partida mais do que eu ganho com um livro a vida inteira…” Palavras dele. E ali naquele canto hoje estou chorando de tristeza mas, chorava de prazer. Lacrimejava de ouvir as coisas que ele contava. A mais recente foi aqui. A última foto dele eu fiz ali. Ele sentado, de bermuda e havaianas brancas.
Certo dia, em meio à nossa galera, olhou para mim e disse: “Jacózinho não costumo dizer ‘dessa água não beberei’ mas vou lhe confessar: não pretendo voltar aos Estados Unidos”.
Ao retornar de Los Angeles em meados de 2006, no check-in no aeroporto foi confundido pela segurança americana com um terrorista:
“Devido à minha estatura, cor e certamente por causa do atentado do 11 de setembro me confundiram com algum membro do talibã! Pensaram que eu era um terrorista!… Já imaginou? Me encostaram numa parede, fazendo gestos…. Me apalparam todo… Até nos bagos meteram os dedos… Pode um negócio desses?”
B.B.: Vocês se encontram para falar sobre João Ubaldo?
- Os amigos Sergio e Jacob passeando em Itaparica
Jacob Branco: Conversamos mais com o pessoal de fora da ilha pois tem uns caras aqui que não gostavam dele não. Essa é que é a verdade. Porque o João conversava comigo. Isso está na internet. Ele já falou isso para mim pessoalmente várias vezes. Quando ele começou a escrever no jornal O Globo – principalmente -, e na Folha de São Paulo que era reproduzida pela Tribuna da Bahia e posteriormente pelo jornal A Tarde, dizia que o pessoal do Globo se queixava de que ele só ficava falando de Itaparica e ninguém sabe que porra é, nem onde fica. Aí o cara ia dizer que Itaparica é uma ilha que fica no centro na Baia de Todos os Santos. É uma estância hidromineral. Foi a terra onde eu nasci e daí começou a ter maior interesse em Itaparica.
A ponto de eu dizer a ele que o Bar do Espanha hoje está para Itaparica, por causa dele, assim como o Bar Vesúvio em Ilhéus está para Jorge Amado. Essa é que e a realidade.

O Espanha e seu Bar
Chegam aqui várias pessoas – você por exemplo, prazer honroso em conhecê-lo e bater esse papo – procurando saber quem é fulano, quem é sicrano, quem são os personagens de João Ubaldo Ribeiro. Então nossa terra foi mais difundida, foi mais divulgada. Também sou itaparicano e amo muito a minha terra. Infelizmente não há um sucessor para levar em frente essas coisas. Por exemplo, esse assalto que houve recentemente aqui na casa do ex-governador. Aqui em Itaparica, tem assaltos que levam vinte, trinta anos, não descobrem nada.
Agora só porque era a casa de uma figura importante em menos de vinte quatro horas, veio delegado, polícia, helicóptero, prendeu todo mundo. Esse caso teria sido uma crônica de João Ubaldo, com certeza. Ele não teria perdido a chance de fazer uma grande gozação com o ocorrido.
B.B: O que João Ubaldo mais gostava de fazer, além de bater papo com vocês quando estava em Itaparica?
Jacob Branco: Tomar birita. Era um bom biriteiro. Sempre foi. Agora tudo está no livro. Eu li o livro em oitenta e três aqui também quando nós voltamos a nos ver. Ele morou muito tempo nos Estados Unidos, morou no Rio. Foi um dia que nos expulsaram de três botecos. Já tarde da noite, uma hora da manhã quando voltávamos para casa. Na rua da Glória que era a casa do avô dele. Que foi meu professor e diretor aqui no Ginasio. Ele me abraçou e disse:
Porra Jacozinho, no Rio de Janeiro na Hipopótamos, eu tenho mesa cativa e não pago porra nenhuma. Aqui na nossa terra nos expulsam de três botecos. E dava risada prá caralho!
As entrevistas continuam no próximo post. Até lá!
Beto, parabéns e vá em frente. Relatos bem fiéis aos depoimentos. Parabéns!!!
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Caro Sérgio. Essas entrevistas só existiram por causa de sua consideração a Ubaldo, aos seus amigos e a mim! Grande abraço!
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