Também, João Ubaldo, com uns amigos desses… nem Itaparica aguenta! Bate-papo com amigos do escritor – Parte 3

Na qualidade de frequentador, de uns anos para cá, do Boulevard na ilha de Itaparica – bem como assíduo penetra das festas de aniversário do saudoso João Ubaldo Ribeiro – decidi me aventurar a garimpar a falta que ele faz aos seus amigos que sempre estão pela ilha, e olhem só a terceira parte do que registrei.
Devo dizer que fiquei impressionado de início,e depois profundamente tocado com o carinho, a admiração e a amizade que os entrevistados devotam a João Ubaldo. Não me surpreendeu entretanto, pois tratam-se de relações construídas há muitas décadas, que foram nutridas com os encontros de sempre que eles souberam cultivar, demonstrando que nem a distância nem o tempo são capazes de apagar – sequer de diminuir – amizades verdadeiras e desinteressadas como essas.
A todos eles e ao nosso João Ubaldo, meu respeito, admiração e reverência.

Beto Benjamin.

                                                  Parte da extensa obra do escritor.

 

B.B.: Sergio, como foi que você conheceu João Ubaldo?

Sérgio Harfush: Eu conheci João Ubaldo na década de 50. Eu tinha meus 14/15 anos e foi aqui em Itaparica. Ele estudava Direito e começou a namorar com aquela que se tornou a primeira esposa dele, a Beatriz Moreira Caldas, filha do desembargador e nossa amiga. Junta Itaparica com Salvador pronto: aí surgiu a amizade. Foi assim que começamos…

Ele se identificava muito, porque era mais velho que ele, com meu irmão Zeca, que se tornou posteriormente no famoso personagem Zecamunista. Meu irmão era um homem de grande conhecimento intelectual. Discutia muito com João Ubaldo – no bom sentido é claro! Quando João queria escrever sobre um assunto polêmico logo citava Zecamunista, como uma figura polêmica e era comum ele ir lá pra casa no fim de semana, dia de sexta feira para conversar.

Ficávamos bebendo whisky e conversando até cinco, seis horas da manhã. Nós, ele e Bilú que era sua namorada na época. A gente também saía muito pra pescar de noite. Pesca de arrasto e do camarão. Depois íamos lá pra nossa casa e minha mãe fritava os camarões. Varávamos a noite indo até de madrugada comendo, bebendo e conversando.

João, sempre contando histórias!…

B.B: Você frequenta a ilha desde quando?

João Ubaldo e Berenice

João Ubaldo e Berenice

Desde que nasci. Estamos aqui na quinta geração frequentando a ilha: meus avós, meus pais, nós, meus filhos e meus netos. Então desde menino nós nos “dávamos” [ B.B. – modo baiano de dizer que se relacionavam] com João Ubaldo. Ele também morou em Portugal mas, por pouco tempo. Quando voltou de lá no início de 83 veio morar  em Itaparica. Morou aqui muito tempo e como estava na ilha, a gente se encontrava ainda mais, incrementando a amizade porque o verão propiciava os nossos encontros ali, debaixo do oitizeiro na praça. Era ali que a gente também se reunia.

Ubaldo sempre teve um papo fabuloso, inteligentíssimo, com histórias e personagens que ele criava. Não tinha como não ficar muito envolvido pela conversa dele. Ficava até de madrugada papeando.

Um fato que me marcou muito foi o último jantar que ele participou fora de casa, antes de morrer. Foi comigo no Rio de Janeiro. Ele morava pertinho de minha filha Janaína. Quando cheguei de Salvador, ela disse: “Olha, chamei o João Ubaldo e Félix – outro casal amigo – para virem jantar aqui hoje à noite”. Eu não tinha pedido para ela fazer nada. À noite ele veio, bebeu whisky, bateu papo… Isso foi no dia 17 de julho. Quando deu meia noite, apesar dele morar a uma quadra do apartamento de minha filha, eu disse: “João, espere aí que Serginho, meu filho, vai te levar.” Foi meu último contato pessoal com ele. Morreu no dia seguinte aos 73 anos de idade.

O importante é que foi uma amizade que durou mais de 55 anos.

Assim, com altos e baixos. Também na vida dele, no seu mundo, Ubaldo era muito bem humorado. Era um papo maravilhoso mas, ele tinha, ultimamente, suas fases de baixo astral porque lutava contra a bebida e o cigarro. Não era uma luta fácil. Nós tentávamos ajudar.

Tem outra história interessantíssima: Ubaldo uma vez foi entrevistado pela Veja nas Páginas Amarelas exatamente por sua luta contra a dependência do álcool. Ele era muito sincero, nunca negou essa dependência e foi uma entrevista que poucos teriam a coragem de dar.

Ele parou de beber e as pessoas simplesmente não acreditavam!

Bar do Espanha

Bar do Espanha

Ele andava com um copo de guaraná na mão e as pessoas pensavam que era whisky. Não era. Sou testemunha disso. Posso dizer que Ubaldo durante o verão 70 por cento das vezes ia almoçar em minha casa em Itaparica. Sentava lá. Muitas vezes eu nem estava em casa. Ele pedia uma garrafa de água e ficava bebendo.

É uma história interessante porque ele fez tratamento contra o alcoolismo. Se internou dois meses numa clínica. Eu perguntei como foi que ele parou de beber de uma hora para outra? Contou que um dia tinha bebido muito… Então ele contou que nesse dia fez uma farra e Berenice se aborreceu pois sabia que ele não podia beber. Foi dormir e acordou no meio da noite se sentindo mal. Não teve coragem de acordar a Berenice. Ele sempre foi muito dependente dela, que foi a sua terceira esposa. A realidade é essa. Ele viveu com ela por mais de 30 anos até morrer.

Foi pro banheiro, se sentou e disse: “Vou morrer! Não tenho dúvida nenhuma que vou morrer!” Aí se lembrou de Nossa Senhora (ele era devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro) e pediu:

“Minha Nossa Senhora, se eu não morrer hoje, garanto que vou parar de beber álcool!”.

Não morreu e cumpriu a promessa. Ficou de seis a sete anos sem “triscar” em álcool!

Porém continuou fumando muito. Depois de uns 7 anos voltou a beber cerveja. Ultimamente ele bebia whisky lá no Tio Sam. Ele bebia mas numa escala bem menor que antigamente. Bebia aos sábados e domingos com os amigos. O horário dele era de onze e meia às duas horas da tarde. Almoçava, lia as notícias e ia pra casa.

O médico foi muito claro com ele: tinha que parar de fumar e beber. Infelizmente não é fácil para uma pessoa abandonar determinados vícios. João Ubaldo não tinha vontade de sacrificar os prazeres: bebida e o papo com os amigos. Ele teria feito 74 anos no dia 3 de janeiro de 2015.

B. B.: Sérgio, como é que você compara os amigos dele do Rio com os amigos daqui?

Veja eu me dou bem com aquela turma dele lá do Rio, do Tio Sam. Ele gostava em especial de 5 ou 6 amigos mas, posso afirmar que ele se identificava muito mais com o pessoal da ilha. Com os nativos, que fizeram parte da sua infância e que foram parceiros das peladas no Boulevard. Ele gostava de jogar bola. Resumindo, ele se identificava mais com as pessoas que sempre foram muito próximas a ele aqui da ilha, principalmente Jacob Branco e Toinho Sabacu. 

João Ubaldo – foto revista Muito no. 100

Outro que passou a ser um dos seus maiores amigos foi Zecamunista, meu irmão. Também Luciano Kibe Frito – que você não conheceu – foi outro grande amigo dele. Amigo de farra, de bebida, de todos os momentos. Então, além de se identificar mais com o pessoal da ilha – principalmente os nativos – era deles que saía a inspiração para criar as principais personagens de suas crônicas e de muitos romances.

São pessoas que existiram. Algumas vivas ainda; outras mortas. O famoso Caboclo Capiroba era o Zé de Honorina; Gugu que está vivo. Curiosamente dois grandes personagens que serviram de inspiração para João morreram em dias subsequentes. Tem o grande Cuiuba amigo do João e colega de escola primária que inventou a frase que considero a mais filosófica do mundo de todos os tempos. Pra mim não existe frase mais importante e Ubaldo a citava em muitas de suas crônicas:

“pior seria se pior fosse…” 

Era assim: quando João Ubaldo contava um problema para Cuiuba, ele respondia: “Cumpadre, pior seria se pior fosse…” Pra mim a frase é histórica e lapidar.

Eu não sei exatamente ao pé da letra. Talvez Jacob saiba mas contava-se que Cuiuba um dia chegou na escola primária – era muito inteligente, falante e preparado – e disse para a professora:

“Esse Ubaldo aí não é certo da cabeça não! Tem problema de idéia! Ele tem um parafuso a menos… Se prepare Professora que ele vai lhe dar problemas.” 

Ubaldo fez muito por Itaparica. Por exemplo, eu acho uma injustiça, vou ressaltar a grande baluarte que é Dalva Tavares da Biblioteca. Uma verdadeira heroína ao levar a Biblioteca do jeito que leva e de ter feito as homenagens que prestou a João Ubaldo em itaparica. Acho que Ubaldo foi muito mal reconhecido pelo governo baiano, pelo governo municipal. Ele tornou a ilha de itaparica reconhecida mundialmente. Noventa por cento por causa dele e se você ainda não leu – recomendo que leia – um livro maravilhoso que é coletânea de crônicas que ele publicou em jornais. De vez em quando as editoras publicavam um livro de crônicas: “A Arte e a Ciência de Roubar Galinhas”. É um livro de crônicas apenas sobre itaparica. Só com os personagens de Itaparica. Personagens mortas mas alguns ainda vivos como nós e outros.

Jacob Branco: Tem mais dois livros ainda como esse, que são: “Sempre aos Domingos” e “Você Me Mata Mãe Gentil” . Esse último ele dedicou a vocês, aos Harfurshes.

Sergio Harfush: Teve uma coisa muito significativa para nós. Na véspera de lançar um livro ele me ligou. Me ligava sempre. Era o temperamento dele. Era uma pessoa reservada com essas coisas, porém espontânea nas homenagens e disse: “Sergio, amanhã estou lançando o livro que eu dediquei a vocês”. Isso na véspera. “Você me mata mãe gentil” para os Harfushes, no plural. Disse que nome próprio também existe plural. “Faça o favor de ir”. Era uma pessoa muito simples. Não diferenciava posição social, financeira, ou credo muito pelo contrário. Até preferia estar com o pessoal mais simples.

Barco de Xepa que ganhou motor de popa - presente do João

Barco de Xepa que ganhou motor de popa de João

Respondendo à sua pergunta, no Rio o grupo dele era mais condensado, menor de pessoas “intelectualmente”. Vamos entender, botar entre aspas o que é esse intelectualmente: pessoas de um nível de criação muito próxima do dele. Ubaldo se dava muito com os nativos daqui da ilha: Xepa, o caseiro da casa dele era um cara que ele adorava. Ano passado – tem uma história no livro, João conta – Xepa chorou bastante porque Ubaldo disse: “Vou lhe dar um motor de popa”. Porque Xepa pesca. Olha, ele não acreditou: “Não acredito que ninguém vai me dar um motor de popa”. Quando chegou no ano passado ele chegou do Rio e disse : “Peraí que eu tenho um negócio para você”. Quando Ubaldo deu aquele presente a Xepa, um motor de popa zero quilômetro ele não queria acreditar. Abriu o presente, pensando que era um motor recuperado e quando viu o motor novo caiu no choro copiosamente. Ubaldo conta isso nesse livro que você recebeu. Tem até um detalhe que Xepa retrucou que João não botou por escrito – não escreveu crônica – que ia dar o presente. A reação de João foi na hora :

“Porra “seu” sacana, então você vai me pagar o motor de popa! Vai pagar uma prestação de 20 centavos por mês!”

Xepa disse: “Ah bom! Se é assim eu topo. Pois, vou morrer e não pago!”

 João caiu na gargalhada…

João Ubaldo era assim. Pegava tudo nos mínimos detalhes. Me lembro uma vez que eu estava com ele, debaixo da mangueira da casa dele, batendo papo. Ele viu o cágado andando devagarzinho, atravessando o quintal assim com toda a calma e disse:

“Esse cágado tá parecendo o Rubinho Barrichello!…”

Batizou o cágado de Rubinho Barrichello, na hora. No domingo seguinte, escreveu uma crônica sobre o cágado comparando-o a Rubinho Barrichello na Fórmula 1…

Jacob Branco: Estive com a Berenice batendo papo na semana passada. Onde é que tem a mesa cativa do Ubaldo? É no Flor do Leblon ou no Tio Sam? No Tio Sam não é? Eu propus a Berenice ir ao Tio Sam pois tenho uma foto publicada no jornal: eu ao lado do ataúde com o corpo do João Ubaldo. Ela concordou. Vou de paletó preto – ele criou o personagem de Jacob Branco de paletó e eu incorporei -, camisa branca e gravata vermelha homenageando o Vasco da Gama que deveria ter voltado para a primeira divisão. Infelizmente isso não aconteceu. Disse a Berenice:

“Vou sentar na mesa que ninguém senta”.

Jacob e Sérgio no Santa Luzia

Jacob, Sérgio e o cachorro no Santa Luzia

Sergio Harfush: No Tio Sam? É na cadeira que reservaram para ele lá com uma placa: Cadeira de João Ubaldo. Na última vez que eu fui, a turma muito chegada a mim, disse: “Você vai se sentar na cadeira de João Ubaldo”.

Jacob Branco:  Por acaso, como eu sou desconhecido, vou levar foto com a aeguinte dedicatória:

“Obrigado por reconhecerem o valor que tinha o meu amigo João Ubaldo Ribeiro”.

Vou levar uma crônica minha falando dele. Quando disserem: “Levante-se por favor”! Eu responderei “Queira sentar-se aqui e aí entrego tudo pra eles.” Não vai ser legal?

A segunda conversa que tivemos foi sobre o desejo de Berenice de trazer os restos mortais de João Ubaldo para o cemitério daqui. Isso depois do segundo ano da morte dele. Conversei com Dalva. Vamos tentar depositar os restos mortais na Igreja da Piedade onde estão os restos mortais do avô e da avó de João Ubaldo em Itaparica. Naquela igrejinha ali, aquela capela em forma triangular. Vamos começar a falar sobre isso.

Sergio Harfush: Agora devo dizer que me deu muito orgulho foi ser convidado para falar em nome dos amigos dele no seu aniversário de 70 anos. Ele era amigo até do meu neto de 10 anos de idade que adorava ele. Evidente que tinha também seus momentos de maus modos. Também por causa da pressão alta. Teve sua vida limitada apesar de não obedecer aos médicos. Ele sabia que tinha limitações. Confessadamente falo, sem o menor constrangimento:

Não foi muita surpresa o que aconteceu para quem conhecia a vida de Ubaldo na intimidade, porque realmente como ele mesmo dizia: enfiou o pé na jaca!

A parte final das entrevistas será com Zecamunista no próximo post. Até lá.

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