Se vis pacem, para bellum – Meu tio Valdimiro, cavalhadeiro! – final
Finalizando o post anterior:

Família Benjamin: O patriarca avô Elias, avó Santa e os primeiros seis de seus nove filhos! Tio Valdimiro é o segundo a partir da esquerda
O banho no rio
Ao chegar das viagens de negócios, tio Valdimiro se aboletava em um dos muitos quartos daquela casa grande dos meus avós, à beira do Rio Cachoeira. Tirava os trajes de “cavalhadeiro” (chapéu, casaco de couro, botas com esporas etc.), colocava um calção e arrastava a meninada para o fabuloso banho no rio, que corria no fundo da casa e cortava toda a cidade. Seu séquito era constituído por muitos primos…
Na maior confusão, cada um querendo segurar sua mão, lá ia ele com aquele cortejo de sobrinhos pequenos, magros como gravetos.
Pulávamos de alegria, como cabritos, até chegar à beira do rio. Claro, nenhum de nós sabia nadar. Vão tomando nota de quanta coisa não sabíamos, naquela época! Éramos crianças, se esqueceram?
Entrávamos no rio e nos esbaldávamos, nadando nas costas do tio, como filhotes de macaco, pendurados em seu pescoço. Ele atendia a todos. Ninguém ficava sem nadar. Era uma grande confusão e gritaria, como é próprio dos meninos…
Me lembro bem… Ele nos carregava um por um, nadando até uma pedra no meio do rio. Deixava um por lá e, vinha buscar o próximo, até completar a turma. Como o rio não tinha correnteza naquele lugar, ficávamos quietinhos, na pedra, aguardando a nossa vez. Para nós, aquilo era o máximo…
Quando terminava o banho no rio, voltávamos com os olhos vermelhos, de tanto mergulhar na água e, sempre com as mãos de “velho”. Era como chamávamos as mãos engelhadas.
Na verdade, como não conhecíamos bem o nosso idioma (éramos crianças, lembram?), chamávamos de mãos “engiadas”, vocábulo que escutávamos dos nossos pais, que tampouco conheciam bem a língua portuguesa (isso também, só descobriríamos mais tarde!).
A charrete de carneiros
Mas, as traquinagens não se limitavam ao banho de rio. Tinha também as corridas com parelhas de carneiro! Essa tenho que explicar: o tio trazia, de vez em quando, junto com seus cavalos, um bando de ovelhas, carneiros e cabras. Era para vender para o abate na cidade. Uma vez mais, só descobriríamos isso depois.
Para nós, elas eram os “cavalos” que puxavam nossas charretes… Sim, montávamos com os carneiros uma espécie de miniatura de carro de boi e saíamos pelas ruas das redondezas e quem quisesse que saísse debaixo, senão corria o risco de atropelo.
Era uma algazarra enorme nesses passeios deliciosos. Ouvíamos muitos xingamentos dos transeuntes mas, não estávamos nem aí. Nos divertíamos à valer pilotando nossa charrete. Imperdível mesmo.
Gostávamos da velocidade que os carneiros desembestados imprimiam à charrete. Só veria algo “comparável” às nossas bigas e peripécias pelas ruas do bairro depois, quando crescesse:
as corridas do Ben-Hur no filme do Cecil B. de Mille e na Fórmula 1, quando o meu herói passou a ser o Ayrton Senna!
Dinalva, a namorada
Ah! Tio Valdimiro tinha uma namorada. Se chamava Dinalva. Ah Dinalva… Com seus dezessete anos, era belíssima. Seus cabelos eram pretos e longos.
De todos os primos do pedaço, sei que ela gostava mais de mim.
Achava que além de gostar de meu tio, ela era “apaixonada” por mim (só iria descobrir que o apaixonado era eu, quando me explicaram o significado de Eros. Muito tempo depois. Eu já não era mais criança!). Me lembro, que além de muito bonita, usava calça! Não era comum uma mulher, naquela época, usar calças. Tudo isso junto atraiu a minha atenção.
Meu tio e ela faziam uma brincadeira conosco: eles se separavam e cada um dizia o que ia fazer; então os primos escolhiam com quem iriam e corriam para o escolhido. Não dava outra: eu sempre ficava sozinho, nos braços dela, claro!
Aquelas cenas tinham um certo despertar erótico precoce, reconheço. Eu ainda não sabia. Descobriria muito tempo depois, quando crescesse. Algo me movia na sua direção e não queria saber das brincadeiras do tio, como os outros primos.
Corria, me pendurava em seu pescoço (dela, evidentemente) e me deixava envolver pelo seu cheiro, perfume, carinho, abraços e beijos.
Seu cheiro e aquelas cenas ficaram gravadas para sempre em mim…
Dinalva então me levava para o parque de diversões – como se eu precisasse de outro parque para me divertir! Enquanto os outros primos (bobos!) se “picavam” com o tio para o banho no rio ou montar cavalos! Vejam se eu ia perder uma coisa dessas?
Ainda hoje, na hora de dormir, às vezes, as cenas com Dinalva me vêm na memória. Nessa hora, volto a ser criança…

A taca de cabo prata
De vez em quando, também montava cavalo com o meu tio. Ele deixava eu segurar a taca e, até batia no cavalo, fingindo que eu era o “cavalhadeiro”! Esses anos de infância, não sei precisar quanto durou no tempo cronológico. No meu “relógio”, durava uma eternidade. Não acabava nunca.
Não sabia que o tempo era uma dimensão da vida. Também não sabia o que era o tempo e muito menos o que era a vida!…
Então essa infância transcorria assim. Com o tempo sempre marcado a partir das chegadas de tio Valdimiro em casa na cidade.

Cenas de Tio Valdimiro em fotos corroídas pelo tempo!
O crime
Então veio o dia do crime. Meu tio acompanhado de alguns amigos foi para uma casa de tolerância num bairro da cidade. Era muito comum naquela época de muita repressão sexual que os homens adultos frequentassem os puteiros da cidade. Não era apenas em Itabuna. Era a pratica em todo o país!
Soubemos depois por testemunhas como se deu o crime. Lau e meu tio, além de outros companheiros se reuniram nesse puteiro e ficaram bebendo até tarde da noite. Lau tinha planejado tudo e atraído meu tio para uma cilada.
Lá pelas tantas restaram só o meu tio e ele. Lau entâo se despediu e “foi embora”. Na verdade, se escondeu de tocaia atrás de uma porta na descida do sobrado onde eles estavam.
Meu tio desceu e quando passou por ele alguém apagou a luz. Nessa hora Lau disparou vários tiros de pistola Parabellum. Mortalmente ferido e empunhando sua pistola (embora sem forças pois um dos tiros tinha atingindo exatamente o braço esquerdo) tio Valdimiro ainda teve forças para se arrastar para um bar defronte e caiu no chão dizendo: “Chamem minha mãe. Diga a ela que quem me matou foi Lau. Não sei porque ele fez isso…” E tombou morto.
A cena com seu corpo sendo velado na casa da minha avó Santa, eu descrevi no início do post anterior. Ela nunca saiu de minha memória…
Lau, o assassino, tinha recursos. Fugiu e a polícia só conseguiu capturá-lo, anos depois. Foi julgado em júri popular (por este e outros crimes) e condenado a dezoito anos de prisão, tendo cumprido apenas seis. Libertado, casou-se com a advogada (filha de um rábula famoso em Itabuna) que o livrou da cadeia. Bela dupla!
A família nunca mais foi a mesma após o assassinato de tio Valdimiro! Logo em seguida, um dos cunhados dele abandonou a mulher com sete filhos e sumiu. Foi embora para São Paulo. A família perdeu um líder e um provedor.
Os anos se passaram… Um dia, quando eu já tinha uns quinze anos de idade, andando na principal avenida da cidade, a Cinquentenário, em Itabuna, minha mãe e eu, demos de cara com o assassino, que tinha saído há pouco tempo da prisão. Minha mãe gritou para ele ouvir:
“Roberto, esse homem aí na frente, foi quem matou seu tio!”
À pouca distância, olhei para aquele homem moreno e alto. Olhar crispado. Estava olhando para o rosto de um facínora, um assassino, um matador. O homem que tirou a vida do meu tio.
Ele me olhou e baixou a vista. Eu sustentei o olhar mas, não senti nada. Nem raiva, nem pena, nem desejo de vingança! Era como se estivesse olhando para uma sombra…
Sem dizer nada, segui em frente!
Beto Benjamin
História que faz agente se transoortar e imaginar uma vida familiar de muita qualidade , de união e curtida em volta de Natureza e do bem estar de uma cidade de interior , rica tranquila e aquecida economicamente .
Um triste e lamentavel desastre subtraiu a paz e a alegria de todos , coisas da vida que agente nao entende !….
Certamente todos os amigos da epoca e familiares sofreram muito pela queda desta robuata Arvore , contudo , ja existiam frutos germinados , sementes de qualidade , de temperança e de prosperidade ,
Viva voce , Roberto .
Vida que segue !…..
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A bela narrativa leva os grapiúnas à Itabuna dos anos 60, jovem Itabuna cinquentenária do Rio Cachoeira onde a população tomava banho e dos 05 velhos e famosos bairros: Conceição, Pontalzinho, Mangabinha, São Caetano e Cajueiro.
Não conheci o “Tio Valdomiro” mas como itabunense de boa memória lembro do crime e do criminoso a quem, anos depois, vendi roupas numa loja onde trabalhei. Lembro também com detalhes da repercussão do Júri e do casamento do réu com a advogada – filha do rábula e ex vereador, cujos nomes, se omitidos pelo autor, não cabe a mim citar.
Estou impressionado por nunca ter associado o crime ao Beto Benjamim e sua família.
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Caro Iramar. Veja como a vida é! O rábula chamava-se Raimundo Lima. Um grande causídico que conheci e exibia uma rara teatralidade, muito importante na defesa de réus (culpados ou não)! Se tivesse nascido nos EUA seria um grande ator em Hollywood!Foi vereador por seis vezes e militou no PCB e diversos outros partidos.
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Cativante, me lembra a minha historia, com muitas diferencas mas, as aventuras de infancia daquela epoca, eram muoto parecidas para quem vivia no “interior”. Fora as perdas, a sua historia e simples e linda.
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Não acaba agora, não. Queremos mais. Ache outros tios. Ressuscite-o mais uma vez, se necessário; e, se não julgar demasiado ousado, faça como Cândido de Carvalho e inclua um Coronel e/ou um Lobisomem…
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A história que é trágica, acaba adquirindo leveza, pela forma bem contada e humorada que Beto imprime à sua linguagem. Parabéns! Comovente!
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Valdimiro, Lau, brega, tocaia, para bellum (empreitada urbana), casamento da ilustre causídica com o seu cliente…
O velho rio Cachoeira: ilha do jegue, ponte dos velhacos, areeiros, lavadeiras…
Vá lá que seja: Itabuna é um retrato na parede…
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Viajei no tempo e fui parar la em Itabuna, Sua historia é comovente!
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WOW! História muito bem contada. Parabéns! Meu autor preferido, Gabriel Garcia Marquez, escreveu “La vida no es la que uno vivió sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”. Espero e desejo que você continue contando suas histórias.
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