Pedro Gordilho e o caminho de Santiago! – Parte 2
Nesses tempos bicudos de Covid-19 com tantas “deaths, lives, fake news”, desgovernos e outros quejandos, me dediquei a criar – para não pirar – uma rotina de resistência dentro de casa, como todo mundo. Uma delas foi concluir esse post sobre o Caminho de Santiago percorrido por Pedro Gordilho, contendo a segunda parte da longa e divertida conversa que tivemos em Salvador. Coisa que estava devendo aos leitores há muito tempo. Pronto. Está aí. Aproveitem.
Beto Benjamin: De onde vinha sua disposição para caminhar todos os dias durante trinta dias seguidos. Não parece coisa de maluco?
Pedro Gordilho: Rapaz, vou te contar: teve uma ocasião durante a caminhada que peguei um resfriado forte. Durou três dias. Apesar disso tive forças para caminhar. Acordava, acredite se quiser, com aquela alegria e disposição para seguir em frente.
Não tenho noção de onde se originavam essa disposição nem a vontade que pintaram no meu corpo e na minha cabeça para explicar aquela vibração e ânimo para caminhar. Mesmo doente e naquelas circunstâncias em terras desconhecidas…
Era tudo novo. Talvez parte da explicação venha da liberdade sentida verdadeiramente pela primeira vez na vida, de estar naquela aventura – única e exclusivamente – por mim. Me dei esse presente. Afinal, estava fazendo o que queria, falando com qualquer um, sem ter que dar explicações para ninguém. Era minha livre escolha. Sem amarras… Solto na buraqueira… Tá bem?
Queria muito fazer o Caminho de Santiago! Fiz!
Olhando para trás, sempre me senti “preso” na vida. Muita coisa embolada. Dedicado sobremaneira ao trabalho e à família. Carreguei coisas demais e arrastei tantas outras; o volume só aumentava, na medida que a vida se desdobrava. Fazemos isso sem sentir e vamos nos limitando como consequência.
Na hora de viajar dando início à minha aventura, até meu cardiologista se achou no direito de perguntar se eu estava realmente preparado! Pitaco de tudo que é lado. Pode?
Meu dentista foi pelo mesmo caminho: “Pedro, sou atleta e não me sinto capacitado para encarar o que você vai fazer. Tem certeza que vai?”
Até meu sogro resolveu me sacanear: “Menino, fazer isso para quê? Não vai aguentar o rojão”.
Pois fui. Caminhei novecentos quilômetros e voltei muito melhor do que saí! (risos)
O primeiro dia foi o mais difícil. Certamente porque era o primeiro. Foi difícil pelo desconhecimento, pouco preparo, ansiedade e a dificuldade da caminhada. Cruzei trinta quilômetros nos Pirineus sendo cinco de subida. É muito!
E mais mil e quinhentos metros de descida. Foi mole não! Comparando com o que estava acostumado na Bahia: a Cachoeira da Fumaça na Chapada Diamantina, tem uma subida de “apenas” trezentos metros! Tinha sido minha maior “subida”!
Naquele início de peregrinação enfrentei neve, gelo, frio. Tive dor nos pés e nas articulações; apareceu dor em cada lugar que nunca imaginei. Teve uma hora que falei para o Luiz, meu parceiro de aventura:
“Tá difícil! Não sei se consigo continuar”. Dito isso, forcei a barra. Caminhei e cheguei “quase morto” no meu destino da primeira etapa: Roncesvalles. Literalmente quase morto mesmo. A mochila que carregava nas costas pesava oito quilos e meio. No albergue ainda levei uma hora em pé, na fila, para me registrar! Foi dureza.
Meu corpo doía dos pés à cabeça!
Cenas do Caminho de Santiago de Compostela
Pensei: “Deus do céu! O que é que eu tô fazendo aqui?”. Tomei um banho. Relaxei. Descansei um pouco e – para minha surpresa – duas horas depois estava “inteiraço”! Pronto para o jantar. Saí do albergue para a vila como se nada tivesse acontecido. Parecia que não tinha andado trinta quilômetros com uma mochila nas costas.
Acabou a dor. Não tinha mais nada. Passou tudo. Tomei vinho e comi o menu do peregrino. Vi muita gente alegre, conversando, contando suas histórias, compartilhando experiências. Gente entrando e saindo daquele lugar o tempo todo. Afinal, era a Espanha. Que vengan los toros…
Soube que muitos peregrinos pulam essa etapa que fiz no primeiro dia, exatamente pela dificuldade que é a transposição dos Pirineus. Eles não sabem o que estão perdendo pois foi um dos dias mais emocionantes de toda a caminhada. Não apenas pelos primeiros passos dados como peregrino como pela beleza da paisagem e sobretudo experiência vivida e sentida. Em todos os sentidos…
Para mim quem se põe no caminho, atravessa o primeiro portal: o do desconhecimento…
Beto Benjamin: O que lhe motivou a fazer essa aventura?
Pedro Gordilho: Nunca me fiz essa pergunta. O que motivou foi viver uma aventura que não tinha me permitido até então. Só isso. Não teve nada de mirabolante. Simples assim.
Reconheço que fazer o Caminho de Santiago me transformou em outra pessoa!
Beto Benjamin: Ouvindo sua história veja quanta coisa não nos permitimos na vida! Pela primeira vez em quarenta anos você fez algo do gênero! Imagine o quanto nos privamos por ignorância, por medo ou qualquer motivo. Quantas possibilidades perdemos? Quantos encontros não existirão? Quantas dimensões e experiências na vida jamais conheceremos por causa das amarras que criamos?
Pedro Gordilho: De acordo. São responsabilidades que assumimos e temos que dar conta. Nos comprometemos. Normalmente, começava a caminhada por volta de sete e meia. Havia dias que caminhava vinte quilômetros. São quatro horas para chegar ao destino. Muitas vezes, era um vilarejo de somente cinquenta pessoas.
Ficava ali batendo papo ou, às vezes, era um lugarejo chato. Não tinha nada interessante. Pô, parei aqui quando podia ter caminhado mais um pouco. Chegado em outro lugar. Em compensação passamos por vilas e áreas belíssimas. Dava vontade de ficar mais um dia. Não ficava. Era um dia em cada lugar mas, vejo que podia ter me permitido estender um pouco mais. Porém eu tinha uma meta: o dia de retornar ao Brasil. Passagem comprada. Poderia ter mudado sim mas, foi tudo muito bom. Reclamar do quê?
Beto Benjamin: Como foi a preparação para essa caminhada ?
Pedro Gordilho: Não sou um atleta. Nunca fui. Tomar a decisão de viver uma aventura dessa, não foi fácil. Comecei a me preparar de verdade apenas dois meses antes. Meu amigo Luiz caminha todos os dias. Faça chuva ou faça sol . Percorre quinze quilômetros. Uma verdadeira máquina de andar. Viciado em caminhar. Eu não…
Ele me disse que precisávamos começar a treinar. No primeiro mês caminhávamos uma vez por semana. Saindo do Campo Grande passando pelo Jardim dos Namorados até Itapuã em Salvador e voltando. Vinte quilômetros sob o sol. Fazíamos isso em quatro horas, uma vez por semana.
No segundo e último mês da preparação, aumentamos para duas vezes por semana, com mochila como peso. Pode imaginar a cena? Duas figuras estranhas caminhando com mochila na paisagem da orla de Salvador? O barato é que na volta fazíamos um “pit stop” no Yacht Clube, que ninguém é de ferro e tomávamos aquela cervejinha gelada e o banho de mar. Uma beleza…
Recuperava tudo. Foi aí que comecei a perceber que todas as dores que sentia, passavam, depois que descansava. O corpo se recompõe de modo e velocidade impressionantes. As dores crônicas nas articulações sumiam. No último dia da caminhada-treino, percorri quarenta e dois quilômetros sem precisar ir ao médico. Nada. Nenhum problema para resolver. Zero dor.
Falando de dinheiro a viagem você pode montar com o orçamento que quiser. Tem lugar para todos os preços. O verdadeiro Peregrino é aquele que come o menu do Peregrino oferecido em todas as cidades: primeiro prato, segundo, sobremesa, vinho, água e pão. Custa apenas dez euros.
Se quiser, come-se apenas isso. Não tem mais vontade de comer nada porque é muita comida. Vinho Malbec por apenas 5 Euros. Dorme-se num albergue. Cama e banho. Não tem roupa de cama. Leve o seu saquinho de dormir porque o colchão não tem plástico. Então você não vai ficar naquele contato. Tem albergues particulares um pouquinho mais caro. Tem os das prefeituras que não são tão limpos. A viagem pode ser muito barata. Eu revezei acomodações. Fui experimentando…
Beto Benjamin: Como foi que escolheu o percurso da caminhada? Como e por que São Tiago criou esse caminho?
Pedro Gordilho: Dizem que na época que ele viveu, e fez essa peregrinação com os apóstolos de Jesus criou-se a marca do Caminho de Santiago: uma vieira. Os peregrinos para provar que a fizeram, passavam por Santiago de Compostela iam até Finisterra que era o final da terra na costa da Espanha, pegavam a vieira e traziam de volta, como prova. Fui até lá tá, comprovando que fiz o caminho de Santiago.
Eu também trouxe a vieira!
Cenas do Caminho de Santiago de Compostela
Houve muitos momentos emocionantes na viagem. Os olhos se enchiam de lágrimas diante de tanta beleza que estávamos vendo. Dava para sentir o quão pequeno você é nesse mundo. impressionante mesmo.
Vou contar uma situação que me emocionou muito bem no final da viagem. Foi no último dia quando já estávamos voltando. Luiz e eu estávamos juntos há trinta e um dias longe de casa, longe de tudo. Mais que natural desejar voltar para o aconchego de sua casa, rever sua família e os amigos.
Aí ocorreu uma coisa surpreendente. Luiz foi para a França se encontrar com sua mulher. Fizemos juntos o voo de Santiago até Madrid. Saltamos do avião. Ele ia pegar uma conexão para a França e eu pegaria ali mesmo o voo de volta para o Brasil. Fomos caminhando pelo aeroporto sabendo que teríamos algumas horas horas de espera.
O tempo foi passando mas a hora foi chegando. Caminhamos na direção do portão e de repente nos deparamos com uma bifurcação. Era a hora da verdade:
Ali tínhamos que nos separar.
Um iria para um canto e o outro para o outro. A emoção nos atingiu em cheio. Dominou tudo. Olhamos um para o outro e começamos a chorar. Desabamos no choro. Dois homens crescidos chorando que nem criança.
Beto Benjamin: Pedro, Essas emoções na verdade eram um resgate da essência de vocês e que foi se perdendo pela vida, se distanciando de emoções que nos distinguem como seres humanos!
Pedro Gordilho: Concordo totalmente. Emoção como aquela parece que vai ficando algo distante, impossível. No dia que acontece “a ficha cai” e você se depara com um tremendo estranhamento. Que está acontecendo comigo? As lágrimas escorriam. Puta que o pariu!
O que é isso companheiro?
Uma viagem assim é como um casamento. Você se separa da sua família e, querendo ou não, fica trinta e um dias com uma pessoa só. Passando vinte quatro horas por dia com ela. Seu companheiro, amigo de conversar, de rir, contar piada e, na hora de uma separação repentina olha o que acontece. Como é que não sente?
As lágrimas escorriam de meu rosto e eu me perguntando Que porra é essa? Por que estou chorando como uma criança?
Evidente que já estava emotivo, no último dia, pelo fato de estar retornando. Abandonando tudo aquilo que estava vivenciando Aquele momento foi muito forte, Cheio de significados para mim e, certamente também para o meu companheiro de peregrinação Luiz.
Cenas do caminho de Santiago de Compostela
Beto Benjamin: Falando de viagens e histórias posso pedir licença para contar uma Pedro? Em 1992, quase trinta anos atrás, fiz uma viagem a Cingapura, como executivo da Odebrecht. Estávamos construindo uma plataforma de produção de petróleo e gás para a Petrobras. Era a atual P-XVIII em consórcio com uma empresa local. Fernando Barbosa era o líder da nossa equipe de brasileiros residentes em Cingapura.
Encontrei o Fernando muito estressado, lidando com um parceiro novo e um cliente que sempre jogava duro: a Petrobras. Resolvi chamar o Fernando para dar uma relaxada e fomos para Bangcoc na Tailândia passar o fim de semana. Cidade interessante, movimentada, cheia de gente, carros e “tuk-tuk” (riquixá motorizado) pelas ruas. Aquela bagunça o oposto da “pasteurizada” Cingapura.
Estávamos andando pelas ruas de Bangcoc quando nos deparamos com uma universidade budista, cheia de monges com aquelas roupas de cor laranja, típica deles. A porta estava aberta, entramos e pedimos para falar com algum monge. Afinal vínhamos de muito longe. Queríamos bater-papo. Saber como era a vida de um monge budista e ali estava a oportunidade.
Não contávamos com o fato de que a maioria dos monges que ali estavam, não falava uma palavra de inglês. Nos levaram para uma sala e disseram para aguardar. Ficamos sentados no chão, sobre um tapete, por muito tempo e nada acontecia. Não aparecia monge nenhum. Olhamos um para a cara do outro e fomos ficando inquietos, nervosos, chateados com o “chá de espera…””
Quando íamos levantando para ir embora, apareceu um monge com aqueles óculos redondos à la John Lennon. Silenciosamente entrou e ao invés de falar, se sentou e ficou nos mirando com aquele ar de paciência budista, distanciamento esotérico e olhos miudinhos mas, bem vivos…
Começamos a nos sentir os maiores babacas. Poxa, entramos numa “furada”. Esse desejo de entrar aqui e conversar com um monge foi uma “roubada”. Lá pelas tantas e já completamente agoniado quando ia me virando pro Fernando para dizer: “vamos embora que esse cara não vai falar porra nenhuma. Só vai ficar olhando aqui para gente…”
Nesse momento o monge disse umas palavras que jamais vou esquecer. Falou em inglês com aquela “vozinha” abençoada e pausada:
“Vocês ocidentais são muito apressados…”
“Puta que o pariu!” Pensei. Olhava para o Fernando e o Fernando olhava para mim. Ambos com vontade de dar um pau naquele monge. Saímos da Bahia para escutar essa lorota aqui, no outro lado do mundo…
O monge sem se abalar, arrematou: “Vocês gostam de fazer tudo apressadamente.”
“A grande viagem não é que a gente faz para fora. É a que a gente faz para dentro.”
Pronto. Recado dado. Curto e delicado. Disse tudo o que precisávamos ouvir naquele momento. Caímos na real. Nada mais precisava ser dito. Pelo menos para nós. Nos despedimos do monge e abraçamos seu ensinamento para o resto da vida.
Você Pedro, está nos contando a “sua grande viagem”. Na verdade, você – sabendo ou não – estava fazendo as duas: suas pernas te conduzindo na caminhada real e suas emoções no outro caminho, interior, resgatando sensações e valores que está nos contando.
Revela parte de sua essência que, como você mesmo disse, não estava tendo acesso há muito tempo. Com isso está nos permitindo desfrutar paisagens e passagens tão importantes e belas, quanto as outras do mundo exterior…
Continua no próximo post
Amigo Beto,você descreveu tudo com muito esmero,agradeço pelo seu tempo.
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Rapaz, um monge falando isso pra bahiano!… A coisa lá em Cinga-Buda deve ser bem pacata, mesmo…
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Lugares encantadores!! 😍
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Amei essa leitura, me estimulou mais ainda a fazer o caminho, me identifiquei com as coisas da caminhada, sou uma caminhadora. E morri de rir com a historia do monge budista. Obrigada Beto e Pedro!
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