As viagens de Teté!

Aproveitando o embalo da peregrinação do Pedro Gordilho no Caminho da Santiago, das coisas que ouvi do monge budista em Bangcoc na Tailândia muito tempo atrás e as viagens que essa pandemia – querendo ou não – nos convida a fazer nos dias de hoje, fico muito à vontade para “viajar” com uma jovem destemida, pelos quatro cantos deste mundo. Ainda bem que é deste mundo… Estão todos convidados a viajar conosco!

Adriana Lacerda, (Teté) a entrevistada da vez é jovem, bela, alegre, antenada, “rápida no gatilho”, versada e boa de conversa, iluminada, sorriso aberto, olhos brilhantes, cheia de vida, franca e direta, daquelas que não levam desaforo prá casa. Entende?

Teté fala com o entusiamo de uma adolescente descobrindo a vida!

Descreve situações e peripécias – sozinha ou acompanhada – com aquela sutileza dengosa característica dos baianos que sem percebermos, nos transportam para as descobertas, novidades, paradas, encontros, reencontros, desencontros, surpresas, mistérios e dramas do ser humano que parece o mesmo, independente de gênero, país, raça, credo, lugar onde habita ou transita. Eu adorei as histórias de Teté! Fiquei com pena do Gulliver…

Antes de apresentar a entrevista, aproveito para responder a uma curiosidade do próprio Pedro Gordilho  – cuja caminhada ainda está sendo contada aqui no NuncaseSabe. Foram publicados dois posts. Pedro indagou: “Por quê escrevo contando as histórias dos “outros”, quando podia estar falando de si próprio?” Como tem sido a tônica nos tempos atuais.

Minha resposta se inspirou nas palavras  do cineasta Federico Fellini (1920-1993) – de quem sou fã de carteirinha – ao se referir ao amigo e Diretor de Cinema Rosselini de quem era assistente:

“Nunca seria capaz de converter-me em Diretor mas, trabalhando com Rosselini descobri algo que me impressionou fortemente. Humildade na atitude diante do mesmo da vida. Sem presunção, sem dizer estou contando minhas fantasias, minhas histórias. Não. Estou tratando de contar o que vi e depois uma fé imensa no humano. Na matéria plástica em si mesma. O que mais me impressionou e finalmente me abriu os olhos foi descobrir

essa comunhão que se cria, de quando em quando, entre você e um rosto. Entre você e um objeto.

Compreendi que ser um diretor e fazer filmes podia encher a minha vida. Não podia pedir mais. Aquilo podia me oferecer tantas possibilidades. Ser tão fascinante, tão comovedor. Algo que me justificasse e me ajudasse a encontrar um significado…”

Essas palavras expressam bem meu sentir e minha alegria ao garimpar, descobrir, convencer a falar (raramente), entrevistar, contar ou ajudar a contar as histórias dos outros…

Com lembranças assim na memória e na bagagem, ficou bem mais fácil, no meio dessa pandemia, sentar com Teté  sem máscaras – ela de lá, eu de cá – usando o Facetime, ouvir histórias das inúmeras viagens que ela fez por diversos países de todos os continentes, vivenciando experiências incríveis por todos os cantos desse planeta, que reconheçamos, não é tão pequeno assim.

E ainda por cima, Teté é filha de meu querido amigo e companheiro, de longas datas e muitas aventuras, José Caetano Lacerda. Não precisa de mais apresentações, não é?

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Lençóis Maranhenses, Brasil

Beto Benjamin: De onde sacou essa de sair por aí, viajando pelo mundo?

Teté: Está diretamente atrelada à minha história de vida. Ainda bebê aos onze meses de idade saímos de Salvador, Bahia e fomos morar no Peru. Minha primeira infância foi toda em Lima: aprendi a falar, a andar. Acho que isso ficou registrado no meu “sistema” como minha primeira experiência. Não só viajar, morar fora mas explorar outras culturas. Isso me acompanha desde sempre.

Minha mãe conta uma história curiosa: demorei a falar. Ela até me levou em psicóloga, pedagoga. Mas quando comecei a falar, já falava espanhol, português e um pouco de inglês. Ela percebeu que eu queria falar o idioma certo com a pessoa certa: espanhol com minha babá peruana, português com ela e inglês – algumas palavras – com minha irmã mais velha Mariana que ia para uma escolinha de inglês.

Essa salada toda saiu de vez e quando falei já foram três idiomas… Espanhol e português saíram ao mesmo tempo. Até brinco dizendo que metade da minha alma é peruana. Dizem que os primeiros sete anos de uma criança tem aquele efeito esponja, que ela absorve tudo. Morei no Peru sete anos e meio.

Beto Benjamin: Exemplo de como o acaso entra em nossas vidas sem pedir licença nem sabermos as consequências, não é? Seu pai foi transferido para o Peru, levou toda a família e isso influenciou toda a sua vida.

Teté: Totalmente. Por conta disso fui estudar numa escola britânica em Lima. Aprendi inglês e certamente tudo isso influenciou o resto de minha vida. Há alguns anos descobri o termo “cross-cultural“, que designa crianças de culturas que se cruzam pois tinha a cultura brasileira dentro de casa e a peruana fora. Acrescente ainda a cultura escolar, primeiro britânica e depois a americana. Uma verdadeira geléia geral. Foi assim, até completar oito anos de idade, quando saí do Peru.

Beto Benjamin: Que lembranças ficaram dessa época?

Teté: Tenho memórias maravilhosas apesar de que meus pais eram preocupados com nossa segurança. Era época do Sendero Luminoso, grupo terrorista que estava muito ativo no Peru.

Beto Benjamin: Teté, eu estava em Lima na semana que as forças de segurança do Peru prenderam o Rafael Guzman, líder do Sendero. Me lembro bem das blitzes policiais constantes nas ruas de Lima, de dia e de noite!

Teté: Chegamos ao Peru em 1984 e minha mãe conta uma história. Disse que um dia me escondi dentro de casa. Brincadeira de criança. Passei horas escondida. Minha mãe já estava para ter um troço. Naquele tempo em Lima. E eu sumida. Imagine: Sendero Luminoso, carros-bomba, o diabo a quatro.

Quando finalmente apareci – deixando meu esconderijo – minha mãe disse ter tido duplo sentimento: alívio por um lado e vontade de me dar uma surra por outro. Ela dizia: “Você não tem noção do que está acontecendo?” Claro! Não tinha mesmo, eu era criança. Então me lembro que o pano de fundo era esse cenário político do terrorismo.

Me lembro que moramos em algumas casas. Hoje que moro em apartamento lembro como era bacana morar em casa. Tinha animais de estimação: um cachorro. Tivemos alguns cachorros mas, teve uma época que tivemos um bode, como bicho de estimação!

Beto Benjamin: Mas Teté. Um bode?

Teté: É isso mesmo! Um bode!

Foi assim: eu adorava acompanhar minha mãe quando ela ia fazer compras na feira aos sábados. Para mim a feira era uma coisa fantástica. Aquele colorido de frutas, verduras, batatas. Vozes, gritos, gente. Eu adorava… Achava aquilo o máximo.

Um dia fomos juntas e tinha um bode à venda. Ia ser abatido. Minha mãe olhou para o bode imaginando a cena e ficou com pena. Decidiu comprar e disse ao vendedor: Vou levar o bode para casa e nos perguntou, se eu e minha irmã Mariana, a ajudaríamos a cuidar do animal. Concordamos na hora.

Compramos uma mamadeira para ele e virou nosso bicho de estimação. Mais um. Na verdade era um cabritinho. Ainda tinha o umbigo. Levamos para casa e ele fazia companhia ao cachorro. Acho até que ele pensava que fosse um cachorro também. Foi crescendo e virou bode de verdade. Com chifre e tudo. O nome dele era Arnaldo…

Tenho muitas memórias pois convivíamos com muita gente amiga naquela época. O pessoal da Odebrecht, onde meu pai trabalhava. Os filhos dos amigos de meu pai eram quase que “primos” de tanta intimidade. Recordo bem dos finais de semana na casa de um, na casa de outro. Muitos churrascos, festas de Halloween. Celebrávamos o Sete de Setembro. Era tudo muito alegre…

Ótimas recordações. Lembranças gostosas, sim. Adorava minha escola. Ah, ainda tínhamos dois coelhos em casa. Um meu, um de Mariana.

Outra história engraçada: um dia, coloquei o coelho dentro da minha lancheira e levei para a escola. Claro, ele quase morreu sufocado mas, escapou. Quando cheguei em casa de volta, novamente dentro da lancheira, ele estava quase desfalecido mas, sobreviveu. (Risos).

Clicando nas fotos saberá o país

Beto Benjamin: Quando saíram do Peru foram para onde? Como foram essas mudanças para você?

Teté: Saímos do Peru para os Estados Unidos. Fomo morar em Maryland por uns  dois anos. De lá voltamos para o Brasil, para Salvador. Ficávamos nós três em Salvador e meu pai já estava na ponte aérea Rio-Brasília-Salvador. Trabalhando.

Aos quinze anos voltei – para estudar – aos Estados Unidos. Fui para um colégio interno em Connecticut. Passei um ano lá e terminei o ginásio em Salvador, na Escola Americana. Cheguei a prestar vestibular na Unifacs em Salvador mas, não me adaptei. Aî já não era mais a minha realidade. Achava tudo muito estranho.

No ano seguinte como fui aceita numa universidade americana: George Washington University em Washington DC. Cursei quatro anos. Depois morei em Miami onde permaneci por quase dois anos. Em seguida, fui para Valência na Espanha, onde fiquei cerca de um ano e meio.

Fui para Chipre onde passei um ano e pouco. Posteriormente voltei para o Brasil onde fiquei um tempo no Rio de Janeiro e depois dois anos e meio em Florianópolis. Voltei para o Rio e em 2013 fiz uma viagem de volta ao mundo por treze meses. Percorri trinta países.

Beto Benjamin: Ufa. Cansei só de ouvir… Você nasceu com sebo nas canelas? Que conta dessa passagem pelos Estados Unidos?

Teté: Foi uma experiência diferente. Saí de uma escola privada britânica de elite em Lima e fui morar num subúrbio de Maryland, onde estudei numa escola pública, muito boa. A razão de ter escolhido aquele bairro foi porque ele tinha uma das melhores escolas da região mas, era “white-suburbian” dos Estados Unidos.

Na minha sala de aula tinham poucos estrangeiros. Eu e uma chinesa adotada ainda bebê, que não falava chinês. Era americana com feições chinesas. Tinha também um paquistanês. Éramos apenas três estrangeiros. Os demais americanos. Eu era olhada de maneira diferente pois meu sotaque era britânico. Fui americanizando meu sotaque para conviver. O lugar que vivíamos era aquela coisa americana mesmo: uma casinha atrás da outra, bonitinha, com jardim na porta. Lembro dos invernos, escorregando na neve em frente da casa. O lugar era super-bonito, super-tranquilo. Mas, na escola era bem diferente.

Também pudera. Não tínhamos os laços de amizade que fizemos no Peru. Era recomeçar do zero. Foi difícil fazer amizade, entrar nesse mundo. Ser aceita. Entretanto, foi um momento forte de núcleo familiar. É o que acabou sendo para nós. Americano é assim. Muito mais difícil de pertencer a vários grupos sociais como no Brasil e na América Latina. As relações ficam mais restritas. Apesar das dificuldades, foi uma experiência pessoal e familiar muito enriquecedora.

Tenho boas lembranças da casa, das brincadeiras. No quintal apareceu um dia um veado pulando no meio daquela floresta linda. Um lugar super-tranquilo. Imagina. Mariana com dez anos de idade e eu com oito. Íamos a pé para a escola e era super-seguro.

Tinha todo esse lado interessante. Era bem pertinho de Washington DC. Cidade com uma vasta riqueza cultural. Foi  um recomeço difícil para nós mas, com muitos ganhos.

Depois dos Estados Unidos, voltei para o Brasil.

Beto Benjamin: E a viagem para morar na Espanha? Como ocorreu?

Teté: Fui para a Espanha já adulta. Mais ou menos após um ano de formada. Conheci meu ex-marido quando trabalhávamos na mesma empresa em Miam. Surgiu uma oportunidade para ele ir trabalhar na Espanha. Fui junto. Lá, decidi fazer uma pós-graduação em Marketing. Trabalhei com mídia, na verdade. Era uma agência de planejamento de mídia em Valência.

Adorei a cidade. Respira arquitetura: muitas obras de Calatrava. Uma coisa icônica. Uma cidade grande e pequena ao mesmo tempo. Grande, para atender às necessidades sociais, culturais, fazer minha pós-graduação mas, não tão grande quanto Madrid… Nem tão turística e movimentada como Barcelona… Acho que foi um meio do caminho para morar. Visitar e morar são bem diferentes. Conhecia Barcelona. Já tinha passado uns oito meses estudando lá.

Hoje percebo a diferença com muita clareza. Vi o outro lado de morar. Adorei mas, é morando que se vê o mau humor do espanhol e outras diferenças. Eu vinha dos Estados Unidos, onde se vai num supermercado e se compra tudo ali. Na Espanha, pelo menos naquela época, até existiam os super mercados mas, eram pequenos.

Claro, em Valência tinha um ou outro Carrefour – que é grande – mas, culturalmente na Espanha onde vivi se comprava pão na padaria, carne na loja de carne, outras compras na mercearia. No mercado se compram produtos de limpeza porem tem que lembrar que a geladeira em casa é pequena. O apartamento  também é pequeno. Exatamente o oposto dos Estados Unidos.

Saí de um lugar onde tudo era grande, para seu contrário. Coisas da vida!

Adorei isso: pegar meu carrinho de compras e ir em dois ou três lugares diferentes, para adquirir o que precisava para a semana. Não podia ser mais do que isso. Não cabia. Nem na casa, muito menos na geladeira. Porém isso tem uma beleza. Você acaba conhecendo os vendedores. Se apresenta. Fala com eles. Estabelece uma relação. Tem seu charme.

Não é tão prático como o sistema americano mas tem um lado de viver em comunidade, cumprimentar e conversar com as pessoas, levar a vida em outro ritmo.

Eu aprendi isso lá e foi muito gostoso. A beleza da diferença. Quando você mora, não tem jeito. Tem que abraçar a diferença.

Bem, depois de Valência veio Chipre…

Beto Benjamin: Chipre? Menina, o que você perdeu lá?

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Chipre

Teté: (Risos). Calma, as viagens estão só começando. Fui, mais uma vez, graças ao trabalho de Gustavo, meu ex-marido. Um dia ele disse: “Surgiu uma oportunidade de trabalho em Chipre”. Eu disse : “Ótimo. Tenho uma amiga cipriota”. Ele falou: “Como? Uma amiga em Chipre?”. Respondi que tinha, pois havia feito um trabalho voluntário em 2006, viajando por alguns países e conheci uma garota que era de lá. Não conhecia o país contudo, conhecia uma pessoa de lá. Fomos…

Chipre é uma ilha dividida: parte grega, parte turca. Super interessante. Fui morar num vilarejo. Nenhuma cidade lá era muito grande. Eu fiquei com a mesma sensação de recomeçar novamente.

Moramos em Larnaca, que era uma das maiores cidades de lá. A capital é Nicosia. Junto com Limassol, formavam as três maiores cidades do país. Tem muita história. Tem tudo que tem na Grécia e na Turquia porém, numa escala menor. Chipre tem templos, construções e arquiteturas como as da Grécia antiga, com sítios históricos, praias lindas.

Mas, tudo provinciano com um povo super fechado. Conheci pessoas através do meu trabalho. Eram muito fechadas. Talvez por ter sido colônia britânica. Percebi ainda que ilhas em geral tem culturas muito fechadas. Cultura de ilha é coisa de “nós”. Quem sabe até para se proteger. Não são nada abertos. Isso é uma coisa que eu saquei.

Foi outra experiência de vida. Beirava a xenofobia. Sei que é uma palavra forte mas, era por aí mesmo… Povo fechado. Até meio carrancudo. Isso apesar de ter histórias lindas, de pessoas bacanas que se conhecem num vilarejo, num supermercado, num restaurante, numa feira, enfim em qualquer lugar. Mas a tendência é eles serem mais fechados.

Visitei diversos vilarejos no interior de Chipre. Alguns deles com poucas pessoas, cinquenta, cem pessoas vivendo ali. Uma verdadeira viagem no tempo. Parecia até um universo paralelo porque existe uma fronteira. A ilha é de fato dividida. O lado turco de Chipre nem é reconhecido como país pela ONU. Parece mas, não é outro país.

Culturas completamente distintas. Sair da Grécia e entrar na Turquia. A religião, a comida, as feições das pessoas… Tudo diferente. Se vêem mesquitas no lado turco. Então para mim, valeu como experiência de vida. Muito aprendizado. Até brinco com as pessoas e digo ser a única pessoa, que morou em Chipre, que você vai conhecer. Muita curiosidade para voltar lá.

Nunca mais voltei!

Continua no próximo post

4 comentários em “As viagens de Teté!

  1. Espetacular.
    Adorei a história e estou ansioso pela continuação.
    Imagino a quantidade de cervejas que o papo dessa garota pode proporcionar num bar bem suprido de tira gosto, sem pandemia claro.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Adorei a história de Teté. Acho que ela lhe inspirou porque a história dela lembra a sua, não? Você bem que poderia nos contar sua experiência em morar e trabalhar pelo mundo…

    Curtido por 1 pessoa

  3. Sou daqueles brasileiros que praticamente não puseram os pés fora do Brasil, porém, nem por isso deixo de curtir tais relatos, muito ao contrário, “viajo” junto e me coloco na pele de seus autores… a Teté me fez imaginar viver momentos e situações raras como as descritas neste post que, do alto dos meus quase 58 anos, sinto desejo de quem sabe um dia, vivenciar pra valer, pisando sesses solos tão diferentes do nosso… aliás, nunca se sabe, né?

    Curtido por 1 pessoa

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